Passados oito anos sobre a última aula, regressei à
escola. Uma escola especial. Embora completamente diferente de quando a
frequentei, era a mesma escola onde cumpri seis anos lectivos. A escola da
terra onde nasci. Fui convidado pela Associação de Pais para, integrado num
programa de incentivo à leitura, falar sobre livros. Talvez fosse suposto que
falasse sobre os meus, mas prefiro sempre falar sobre os livros dos outros. Foi
o que fiz. Entre duas balizas, representadas pelo último livro que li e um comando
de PlayStation, falei dos livros que me marcaram quando ali era estudante.
Livros marginais aos currículos escolares, livros aos quais cheguei por acaso e
por uma curiosidade imensa. Tinha uma intenção inicial, há sempre uma intenção
inicial, desmistificar três declarações que me tenho fartado de ouvir ao longo
dos anos: não gosto de ler, não tenho tempo para ler, os livros são caros.
Assumindo que o mundo hoje é diferente daquele que eu experienciei há 25 ou 26
anos, não posso deixar de constatar que no essencial muita coisa se mantém. E o
essencial é a curiosidade que aguça o engenho. Ou nos limitamos a aceitar tudo
tal como nos é apresentado ou nos atiramos às coisas e procuramos pensá-las,
olhá-las de outras perspectivas, desconstruí-las. Os livros, por exemplo, podem
ser olhados e pensados sob várias perspectivas. Tinha na plateia duas
ex-professoras a quem devo para a vida as primeiras lições de inglês e algumas
boas horas sobre língua portuguesa. Foram importantes pelas bases que
disponibilizaram, foram essenciais pelas raízes que regaram, mas não mais
importantes do que as sementes lançadas por um mundo que gira à nossa volta e
do qual jamais retiraremos proveito se não soubermos estar atentos. Talvez a
distracção e a indiferença sejam os nossos maiores inimigos, talvez a atenção e uma
permanente humildade face ao saber, porque de garantido temos apenas uma
incomensurável ignorância que a todos basta, sejam as portas para novos e
fortificantes mundos. Os mundos dos nossos amigos imaginários, os livros, esses
mesmos amigos que nos acompanham para onde quer que voltemos o olhar deixando
marcas que por vezes nem chegamos sequer a notar. Por isso comecei pelos meus
quinze anos, comecei pela música, comecei pelo CD An American Prayer e pela
descoberta de que afinal aquele CD era um livro, não era só os acordes iniciais
da versão ao vivo de Roadhouse Blues que nos levavam ao delírio nas festas da
escola. Contei como essa descoberta me levou a uma biografia dos The Doors onde
encontrei, pela primeira vez, numa cidade conservadora de província referência
às mentes mais revolucionárias de outros tempos, Nietzsche, Rimbaud,
Baudelaire, escritores beat… Encontros capazes de mudar uma vida, como
modificada foi uma vida depois de serem lidos os primeiros aforismos do
filósofo alemão que matou Deus. E da Origem da Tragédia fomos aos gregos
antigos, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, a obras com mais de 2400 anos onde a
vida era já o que sempre foi: uma sucessão de equívocos, destinos cruzados, uma
tensão de paixões onde entre o dever e o ser o homem se afirma. Édipo Rei,
traduzido por Agostinho da Silva, permitiu-me falar sobre as Conversas Vadias, lembrar-me como era fascinante ficar a ouvir duas pessoas conversarem
inteligentemente sobre os mais diversos temas num cenário tão austero como o
principal interveniente daquelas conversas. Agostinho da Silva foi para mim,
durante muitos anos, um símbolo de liberdade, de liberdade de pensamento e de
acção. Daí que não tenha sido difícil passar das Sete Cartas a um Jovem Filósofo
aos autores lidos, cantados e interpretados pelo Mário Viegas no Palavras Ditas.
Um hattrick de mários, à guisa de homenagem: Viegas, Cesariny e Mário-Henrique
Leiria. Um conto deste, um poema daquele, porque a poesia não são apenas rios
translúcidos a atravessar paisagens primaveris com passarinhos a cantar, e
tomem lá o Rimbaud traduzido pelo de Vasconcelos. Os livros são mesmo
como as cerejas. Quem estiver interessado que descubra o Rimbaud por si mesmo. Um
rapaz raro, como diria Llansol, não se esmiúça, simplesmente se encontra inesperadamente.
Eis-nos encalhados na badana de um livro. Mais um nome se anuncia: Henry David
Thoreau, pensador para quem desobedecer era uma virtude, inspirador de jovens
aventureiros tais como o malogrado Christopher McCandless, ou Alexander
Supertramp, Thoreau isolado no meio de um bosque, irritado com a sociedade mercantilista
que lhe vinha destruindo a paisagem, auto-suficiente, amigo de indígenas e de
algum modo ele próprio um índio. Pois bem, porque entre o último livro que se
leu e o comando de PlayStation o jogo vai longo, falemos de indígenas,
regressemos ao princípio do mundo, quando alguém nos mandou dominar a Natureza
e todos os animais à face da Terra. O Papalagui, pois claro, o homem branco, esse
génio tão genial que ao olhar-se reflectido nas águas acabou por morrer
afogado, génio distraído, tão cheio de cultura que flutua muitos metros acima
do chão e se esquece do fundamental, ou seja, que é débil, que é frágil, que é
efémero, em suma, que são idiotas as suas pretensões. Espreitemos um pouco a
vida de Geronimo Por Ele Próprio, escutemos a Fala do Índio, é um vento que vem
das profundezas do ser e nos trespassa o corpo com a vibração de uma voz
silenciosa, não é poesia nem religião, é o canto de um pássaro, é o voo de um pássaro,
é um raio de sol a atravessar as águas do rio, é a natureza selvagem, sim, o
animal que caminha e sobrevive em conformidade consigo próprio. Ah, que esse
homem tenha terminado os seus dias viciado no álcool, a representar peças
ridículas em feiras de variedades, diz muito mais sobre o que nós somos do que sobre o que ele foi. Diz-nos,
por exemplo, que entre o último livro que lemos e o comando da PlayStation
ainda há muito a fazer, há todo um jogo que mal começou e que não faz sentido
interromper por julgarmos que não gostamos de ler quando nunca nos aventurámos
na leitura, ou que afastamos por pensar que não temos tempo para os livros
quando o temos para tudo quanto não nos é proveitoso, ou porque são caras as
obras quando à mão de semear temos ao nosso alcance todo um mundo novo por
explorar. Ora experimentem lá googlar Geronimo. Agora aventurem-se sem temer
consequências. No final, o preço mais caro que podemos vir a pagar é o da nossa
ignorância. O preço da aventura desperdiçada, da viagem perdida, das asas
cortadas ainda antes de o voo ter levantado. Que fique aqui registada a
manhã de regresso à escola, com poemas que julgo ter escrito espalhados pela
sala sob a forma de marcadores, com um livro que julgo ter publicado a chegar
às mãos dos leitores 10 anos depois de ter visto pela primeira vez a luz do
dia, com simpáticos presentes que guardarei entre as mais comoventes das minhas memórias. Uma manhã de memórias, portanto. Uma manhã contra o esquecimento.
8 comentários:
Como professora de Português, desde que me conheço apaixonada pela magia das palavras, e, acreditando que as mesmas (em livro, em conversa, em filme) podem mudar a vida, tive o privilégio de partilhar, ou melhor, de vivenciar, o momento aqui descrito pelo Henrique (permita que o trate assim).
Muito obrigada. Os nossos alunos não esquecerão a viagem de um livro a uma playstation.
Bem haja pela partilha.
Manuela
Muito obrigado.
Bela manhã! :)
:-)
Como professoras desta escola e da equipa da Biblioteca Escolar, foi com grande pesar que não pudemos participar no evento tão bem descrito pelo Henrique, ainda que tenhamos colaborado para que aquele momento único acontecesse.
Sabemos que os momentos inolvidáveis são irrepetíveis, não obstante esperamos que, no próximo ano letivo, seja possível mais um encontro que, decerto, ficará gravado nas nossas memórias.
Bem haja
Margarida Santana e Paula Ribeiro
Adoro.
Lendo o texto que surgiu do seu "regresso à escola", fiquei com uma pena imensa por não ter podido estar presente na palestra "Os livros são como as cerejas". Um texto belíssimo que nos dá uma pequena ideia do quão gratificante foi o encontro com o Henrique . Uma memória a reter, uma experiência a repetir.
Agradeço a iniciativa louvável da Associação de Pais desta escola e a generosidade do Henrique.
Prof. Paula Henriques
Grato estou eu pelo convite. Saúde a todos,
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