segunda-feira, 9 de maio de 2016

VER NO ESCURO

Cláudia R. Sampaio (n. 1981) é uma das vozes poéticas mais promissoras da sua geração. Reconhecê-lo é uma redundância que não deve distrair-nos de uma leitura exigente do que vem publicando, muito menos depois de dois primeiros livros com boas indicações: Os Dias da Corja (do lado esquerdo, 2014) e A Primeira Urina da Manhã (Douda Correria, 2015). Ao terceiro livro, integrada numa colecção que lhe permite chegar a leitores provavelmente alheados da obra anterior, por razão de espaços de distribuição desiguais e exposições mediáticas distintas entre os três editores, a poesia de Cláudia R. Sampaio denota algumas debilidades que não podem deixar de ser apontadas. 
Ver no Escuro (Tinta-da-China, Março de 2016) não é um mau livro, consideração que seria injusta face à força inegável de alguns dos seus poemas. Podemos, contudo, lamentar que nem todos eles estejam ao nível do primeiro e do último, momentos altos de um conjunto onde os vícios, ao contrário das virtudes, se encontram no meio. Por vícios entenda-se aqui tiques, manias, soluções fáceis que prejudicam o conjunto no seu todo. Um dos mais evidentes é a utilização abusiva de sufixos diminutivos e aumentativos. No caso dos diminutivos a tendência chega a ser obsessiva, ficando os poemas prejudicados pela sugestão de uma sentimentalidade à qual se opõem nos seus melhores momentos.
Exemplos: «camisolinha de gelo» (p. 10), «quartinho-ilha» (p. 11), «abelhinhas doidas» (p. 13), «vem devagarinho» (p. 16), «existindo de mansinho» (p. 23), «mansinhos» (p. 37), «mãozinhas cheias» (p. 40), «devagarinho» e «tardinha» e «laguinho» (p. 43), «miudinhas» (p. 46), «orelhinhas» e «cabecinha» (p. 48), «rendinha antiga» (p. 49), «tiros de migalhinhas» (p. 55) — neste caso, o sufixo é ainda menos aceitável por já serem suficientemente diminutas as migalhas elas mesmas —, «larguinho» (p. 64), «Fininhos» (65), «dois pezinhos» (p. 70). Por vezes, os diminutivos dividem o protagonismo com os aumentativos num mesmo poema. Noutras ocasiões, aparecem sozinhos a trair o poder de uma linguagem suficientemente sugestiva. 
Num mesmo poema encontramos um «passado passadíssimo» (p. 32), um «violentíssimo eco» e uma «violência lindíssima» (p. 33) completamente escusados, pois ao contrário de oferecerem ênfase às imagens em evidência acabam por manchar o poema com uma dispensável afetação. Em sentido contrário, note-se como é possível ser-se hiperbólico sem cair na armadilha de uma linguagem afectada: «Sabemos que vamos de encorrilhadas faces na procissão / de milhões de peitos ao abandono / de milhões de fomes escancaradas / e que de lá voltaremos desmaiados em mais vultos / e seremos muitos, muitos ombros erguidos / debaixo do desmanchar das febres altas / debaixo dos canteiros em janelas maternas / e das coisas irreparáveis para além do cuspo» (p. 54). 
Ora, se no início do século passado um dos nossos grandes cultores do modernismo, a saber Mário de Sá-Carneiro, lamentava a ausência de um golpe de asa para atingir qualquer coisa de superior — «Um pouco mais de sol – eu era brasa» (in Quase) —, cem anos depois Cláudia R. Sampaio vem responder a esta carência com uma espécie de apelo ao excesso: «Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita / mais a vento de sul ou de norte, / mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!» (p. 7) Algumas páginas depois, num dos melhores poemas deste livro, podemos também ler o seguinte verso: «Hei-de morrer como um todo, nunca por partes». É o primeiro verso de uma estrofe que procura responder ao verso isolado que a precede: «Onde estão os Poetas que morrem a cada verso?» (p. 73) A maiúscula não é ingénua e faz sentido (assim como, diga-se, o malfadado ponto de exclamação da página 7), demarca uma diferenciação na mesma medida em que assume uma posição no universo da poesia. 
Tanto Mário de Sá-Carneiro como Luís de Camões — «Amor é um fogo que arde sem se ver» — parecem ecoar no imo dos versos da autora de Ver no Escuro, respondendo-lhes esta também com jogos semânticos onde sobressai uma incontenção verbal capaz de desorientar a leitura e instaurar uma espécie de incomunicabilidade. Os sublinhados são meus: «Explicar que é nas tuas mãos que / se alastram erupções a peito e bala / que é nas costas do teu hálito que / balança a minha crença oblíqua / meu cavalo de Tróia / meu átomo alucinado // que perigosa andança pela / tua linha de comboio incendiado / perigosíssima fonte de / arrebatamento diurno esfinge / perigosíssima chicotada arcebispal / na pata de um sonho morto» (p. 26). Estou em crer que um poema com tal densidade metafórica só teria a ganhar, quer em termos rítmicos, quer em potencializações do significado, com uma outra contenção lexical, tomando-se por excessivo o que está a sublinhado. 
Há a espaços uma adjectivação na poesia de Cláudia R. Sampaio que me parece desnecessária e prejudicial à leitura, sobretudo quando se pretende abordar certas temáticas com um tom cruel, em sentido artaudiano, exibindo a tal excessividade reivindicada ao longo de um livro cujo título é, por si mesmo, uma arte poética. Sublinhe-se, para terminar, que alguns dos melhores poemas do conjunto acabam por recorrer a uma metodologia poética clássica tal como o é a anáfora. São disso exemplo os poemas «Não há nenhum pássaro sobre a /minha cabeça» (p. 24) — evocação de Manuel António Pina? —, «Tragam-me um homem que me levante com / os olhos» (p. 39), «Não adianta procurar por procurar» (p. 58) ou «Estou viva.» (p. 62) — dada a ausência de títulos, socorro-me dos primeiros versos. Também exemplo do que há de melhor nesta colectânea é o poema que transcreverei de seguida, o qual, lá está, não precisa de ser incontido para ser excessivo, nem carece de truques para produzir efeitos agitadores:

Quando partes a loiça toda
e não tens um copo para beber água
e pegas na garrafa que está no frigorífico
mas quando vai à boca cheira ao bafio
do dia de ontem
por isso fazes as mãos em concha para
levares a água à boca
e deixas escorrer gotas de novo dia
e a concha de mãos é a barriga da tua mãe
e a barriga da tua mãe é a tua miséria
e a água na boca, o teu coração com novo
atestado
e a artéria aorta é o cano que te liga ao esgoto
e no esgoto está o teu cérebro de braçadeiras,
criança nova de sorriso estridente a
chafurdar numa poça arrítmica,
à espera de ser coroado.



Cláudia R. Sampaio, Ver no Escuro, Tinta-da-China, Março de 2016, p. 45.

3 comentários:

Rita Nashe disse...

e a artéria aorta é o cano que te liga ao esgoto
e no esgoto está o teu cérebro de braçadeiras

de facto agita :)

Anónimo disse...

É no que dá: os editorzinhos só publicam poeminhas dos poetinhos.

Anónimo disse...

Li dois livros dela - escrita rápida, sem paragens para o amadurecimento do critério estético. Fórmula sem conteúdo.