quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A PUTA CAMPONESA


O muro alto da frente que tapa o pátio
tem com frequência um reflexo de sol infantil
que lembra o estábulo. E o quarto desarrumado
e deserto de manhã, quando o corpo desperta,
tem o cheiro do primeiro perfume inocente.
Até o corpo, enrodilhado no lençol, é o mesmo
dos primeiros anos em que o coração saltava descobrindo-o.

Aqui acordamos desertas ao apelo antecipado
da manhã, e na pesada penumbra ressurge
o abandono dum outro despertar: o estábulo
da infância e o pesado cansaço do sol
quente sobre os portais indolentes. Um perfume
impregnava ao de leve o familiar suor
dos cabelos, e os animais sentiam-no. O corpo
gozava furtivo a carícia do sol
insinuante e calma como uma leve carícia.

O abandono do leito acalma as pernas
estendidas, jovens e roliças, quase ainda infantis.
A rapariguinha inocente sentia o cheiro
do tabaco e do feno e tremia ao contacto
fugitivo do homem: gostava de brincar.
Às vezes brincava com o homem deitada
no meio do feno, mas o homem não cheirava os cabelos:
procurava-lhe no feno as pernas contraídas,
moía-lhas, esmagando-as como se fosse seu pai.

O perfume eram flores pisadas sobre pedras.

Muitas vezes regressa no lento despertar
aquele sabor decomposto de flores distantes
e de estábulo e de sol. Não há homem que saiba
a subtil carícia daquela acre recordação.
Não há homem que veja, além do corpo estendido,
aquela infância passada numa ânsia inocente.


Cesare Pavese (n. 9 de Setembro de 1908, Santo Stefano Bello, província de Cuneo, Itália - m. 27 de Agosto de 1950, Turim), in Trabalhar Cansa, tradução e introdução de Carlos Leite, Edições Cotovia, Fevereiro de 1998, pp. 101-103.

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