domingo, 22 de julho de 2018

UM POEMA DE VICENTE VALERO


HERANÇA

A vida que nos deram nós vivemo-la.
A fundura transparente dos poços,
a sombra irrenunciável dos pinheiros,
o trânsito custoso dos animais,
o mar tão inseguro dos beijos.
A casa que deixarmos nos recorde
só no manancial dos seus costumes,
só como nós próprios recordamos
o peso milenário dos seus muros,
o cansaço do fruto e das raízes,
a lenda que herdámos dos seus símbolos.
Com que insignificância habita o homem
a pátria da cal e da memória,
o jardim calcinado dos sonhos.
A vida que nos deram nós vivemo-la.
A casa que herdamos habitamo-la.
Tal como a encontramos permaneça,
antes que nos anuncie o mensageiro
— ofegante e depois de ter cruzado
a névoa por entre as ilhas — a derrota,
como num drama antigo, seu esconjuro.


Vicente Valero (n. Ibiza, 1963), in Trípticos Espanhóis — 2.º, trad. Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, Junho de 2000, p. 67.


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