domingo, 16 de junho de 2019

JEAN-JOSEPH RABEARIVELO




Quem quiser meter mão nesta terra, saiba que aqui nascido hei-de aqui morrer. Em cada rasto uma bandeira, um fóssil, esta terra é meu corpo. Nasci de acordes nunca antes ouvidos, um sopro. Não nasci do barro nem do sémen, não nasci sequer de uma língua, nasci deste chão pisado por quem caminha à noite sob a luz do luar. Podeis dizer, ele foi concebido por homem e mulher, por espírito santo. Nenhuma ciência determinará meu nascimento, nasci deste chão e só a ele todo o ar que respiro se vergará. 

Em tempos, li nos livros teorias infindáveis acerca do amor, cosmologias urdidas pelos dedos hábeis das mentes mais invulgares, em tempos ouvi dos xamãs histórias sobre o princípio de todas as coisas, fiquei a saber como se erigem edifícios altíssimos, em tempos caminhei sobre as águas e mergulhei fundo na oceânica dúvida do desânimo. Agora, com os sentidos entorpecidos pelos mitos, pelas teses, pelas cosmogonias, limito-me a mergulhar o corpo na terra para do mergulho assomar purificado por sementes e raízes.

Podia dizer: as árvores agitam-se à passagem do vento, os pássaros divertem-se balouçando nos ramos das árvores, as nuvens descem à terra para atapetarem os campos com sua humidade fortificante. Podia dizer: o cheiro da terra molhada, estrume espalhado pela pele rejuvenescida, banalidades, lugares-comuns. A hora não é de poesia, as bucólicas são dores no estômago da Terra. Digo antes que aqui nascido, aqui pretendo morrer. 

Traduzo da noite as falas do silêncio. Quando meio mundo dorme para que a metade que sobra possa destruir, traduzo da noite a espera, a calmaria, o sossego da que permite às corujas alimentarem suas crias, traduzo o sono compensador das palavras dormentes, a cabeça à deriva em florestas labirínticas, secretas, adorável deriva de florestas labirínticas, com «olhos, coração, mente, sonhos», e pelo sonho minhas mãos tocam no tronco das árvores e amparam a seiva que escorre pelo corpo e nela bebem a quietude inteligente dos animais com eles aprendendo a fazer apenas quanto baste. 

Este meu sonho sem pontuação liga tudo a tudo, na floresta quieta somos um pássaro que canta, sol que boceja, uma canoa que se liberta das amarras e desce ao sabor da corrente na direcção de uma nova infância, somos uma trepadeira de dúvidas enrodilhando-se à volta do corpo para em chegando à cabeça desabrochar em corolas multicoloridas de um pranto terno, pacificador. 

Tive uma mãe que disse: as árvores agitam-se à passagem do vento, os pássaros divertem-se balouçando nos ramos das árvores, as nuvens descem à terra para atapetarem os campos com sua humidade fortificante. Tive um pai que disse: o cheiro da terra molhada, estrume espalhado pela pele rejuvenescida, banalidades, lugares-comuns. Mas eu agora digo apenas que aqui nascido hei-de aqui morrer, reivindico meu direito inalienável de morrer quando, como e onde quero, com metade do corpo enterrado sob pedras brancas e a outra metade sob pedras pretas, corpo de amor consolado, agora na terra para sempre da terra, imune ao ruído poluente das coisas que ouvimos dizer e nos abrem dentro feridas que ninguém vê. 

Eu digo: aqui nascido, aqui pretendo morrer.

Nota: natural de Madagáscar, onde nasceu a 4 de Março de 1901/1903 (?), Jean-Joseph Rabearivelo cresceu sob a colonização francesa. Escreveu poesia, crítica, uma ópera, dois romances, trabalhou como editor. É considerado um dos primeiros poetas africanos verdadeiramente modernistas. A elite cultural francesa sempre o desconsiderou. Suicidou-se com cianeto no dia 22 de Junho de 1937.

1 comentário:

Olinda Melo disse...


Este texto: um soco no estômago.

Obrigada por tê-lo trazido.

Olinda