Quem quiser meter mão nesta terra, saiba que aqui nascido
hei-de aqui morrer. Em cada rasto uma bandeira, um fóssil, esta terra é meu
corpo. Nasci de acordes nunca antes ouvidos, um sopro. Não nasci do barro nem
do sémen, não nasci sequer de uma língua, nasci deste chão pisado por quem
caminha à noite sob a luz do luar. Podeis dizer, ele foi concebido por homem e
mulher, por espírito santo. Nenhuma ciência determinará meu nascimento, nasci
deste chão e só a ele todo o ar que respiro se vergará.
Em tempos, li nos
livros teorias infindáveis acerca do amor, cosmologias urdidas pelos dedos
hábeis das mentes mais invulgares, em tempos ouvi dos xamãs histórias
sobre o princípio de todas as coisas, fiquei a saber como se erigem edifícios
altíssimos, em tempos caminhei sobre as águas e mergulhei fundo na oceânica dúvida
do desânimo. Agora, com os sentidos entorpecidos pelos mitos, pelas teses, pelas
cosmogonias, limito-me a mergulhar o corpo na terra para do mergulho assomar purificado
por sementes e raízes.
Podia dizer: as árvores agitam-se à passagem do vento,
os pássaros divertem-se balouçando nos ramos das árvores, as nuvens descem à
terra para atapetarem os campos com sua humidade fortificante. Podia dizer: o
cheiro da terra molhada, estrume espalhado pela pele rejuvenescida, banalidades,
lugares-comuns. A hora não é de poesia, as bucólicas são dores no estômago da
Terra. Digo antes que aqui nascido, aqui pretendo morrer.
Traduzo da noite as
falas do silêncio. Quando meio mundo dorme para que a metade que sobra
possa destruir, traduzo da noite a espera, a calmaria, o sossego da que permite
às corujas alimentarem suas crias, traduzo o sono compensador das palavras
dormentes, a cabeça à deriva em florestas labirínticas, secretas, adorável
deriva de florestas labirínticas, com «olhos, coração, mente, sonhos», e pelo
sonho minhas mãos tocam no tronco das árvores e amparam a seiva que escorre
pelo corpo e nela bebem a quietude inteligente dos animais com eles aprendendo
a fazer apenas quanto baste.
Este meu sonho sem pontuação liga tudo a tudo, na
floresta quieta somos um pássaro que canta, sol que boceja, uma canoa que se
liberta das amarras e desce ao sabor da corrente na direcção de uma nova
infância, somos uma trepadeira de dúvidas enrodilhando-se à volta do corpo para
em chegando à cabeça desabrochar em corolas multicoloridas de um pranto terno, pacificador.
Tive uma mãe que disse: as árvores agitam-se à passagem do vento, os pássaros
divertem-se balouçando nos ramos das árvores, as nuvens descem à terra para
atapetarem os campos com sua humidade fortificante. Tive um pai que disse: o
cheiro da terra molhada, estrume espalhado pela pele rejuvenescida, banalidades,
lugares-comuns. Mas eu agora digo apenas que aqui nascido hei-de aqui morrer,
reivindico meu direito inalienável de morrer quando, como e onde quero, com
metade do corpo enterrado sob pedras brancas e a outra metade sob pedras
pretas, corpo de amor consolado, agora na terra para sempre da terra, imune ao
ruído poluente das coisas que ouvimos dizer e nos abrem dentro feridas que
ninguém vê.
Eu digo: aqui nascido, aqui pretendo morrer.
Nota: natural de Madagáscar, onde nasceu a 4 de Março de
1901/1903 (?), Jean-Joseph Rabearivelo cresceu sob a colonização francesa.
Escreveu poesia, crítica, uma ópera, dois romances, trabalhou como editor. É
considerado um dos primeiros poetas africanos verdadeiramente modernistas. A
elite cultural francesa sempre o desconsiderou. Suicidou-se com cianeto no dia
22 de Junho de 1937.
1 comentário:
Este texto: um soco no estômago.
Obrigada por tê-lo trazido.
Olinda
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