segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

STIGMATA


Nascida em Viña del Mar, no Chile, Teresa Wilms Montt (1893-1921) passou como um relâmpago por este mundo. Aos 17 anos, contrariando ditames familiares, casou com um tal de Gustavo Balmaceda Valdés, mudando-se para Santiago e aí participando na actividade cultural do país. Aproximou-se dos movimentos reformistas e feministas, assim como de um primo do marido. O caso culminará com internamento no Convento de la Preciosa Sangre, sob acusação de adultério. Deprimida, tentou suicidar-se, pela primeira vez, em 1916. O poeta Vicente Huidobro ajudou-a a escapar dos rigores conventuais, levando-a para Buenos Aires. Será na capital argentina que se estreará em livro, publicando Inquietudes sentimentales e Los tres cantos em 1917. Luiza Nilo Nunes conta-nos a história toda num elucidativo posfácio a que deu o nome de “Um exercício fúnebre”, sendo igualmente da sua responsabilidade a selecção e tradução dos textos coligidos, em edição bilingue, nesta antologia intitulada “Stigmata” (Anjo Terrível, Maio de 2019). 
   “Os Três Cânticos” são o pórtico escolhido para entrada nesta poesia, percebendo-se, desde logo, o pendor satanista de versos largos que oscilam entre louvores, orações e lamentações que têm como objecto tanto a Natureza como as forças de um misticismo sombrio. A “excelsa Natureza” destes poemas aparece envolta em imagens de um êxtase cujo horizonte é feito de catástrofe e de morte: «Natureza, Deus meu! Em joelhos, junto a este túmulo amado, imploro-te como uma filha em agonia à sua mãe carinhosa. Zela por ele! Zela por quem me deu o milagre do alvorecer no frio ocaso da minha tristeza; cuida e não o maltrates; em troca leva de mim a juventude para alimento dos teus roedores necrófagos, e o sangue das minhas artérias, para que se embriaguem como num vinho escarlate de esquecimento» (p. 27). O tom remete para certo romantismo de pendor gótico, aqui comprometido na subversão da liturgia oficial recuperando os valores do paganismo e assumindo a blasfémia e a excentricidade como vias de culto prestado aos mortos. 
   São os mortos, para todo o efeito, quem melhor revela aos vivos o sentido da existência. Teresa Wilms Montt compreendeu-o cedo e da forma mais trágica, depois de assistir ao suicídio de um seu admirador. Horacio Ramos Mejía tinha apenas 19 anos e de algum modo é o destinatário da sequência de poemas em prosa intitulada “Na Quietude do Mármore” (1948). Antes, Teresa andou por Nova Iorque, onde foi acusada de espionagem, foi deportada para Espanha, transformando-se na musa de Julio Romero de Torres. Foi em Madrid que publicou, sob o pseudónimo de Teresa de la Cruz, o segundo livro coligido nesta antologia. “Na Quietude do Mármore” é uma sequência de 35 poemas em prosa que têm por destinatário Anuarí, transfiguração espiritual do jovem Horacio Ramos Mejía. 
   O sujeito poético destes poemas encena um contacto algo sobrenatural com o amante morto, não enjeitando imagens de um erotismo necrófilo e assumindo o “delirante êxtase” de uma “mística unção”.  Amor e morte fundem-se em textos marcados a ferros pela dor da perda, uma dor espiritual sujeita a somatização num corpo que sofre tanto da ausência de toque e como da consciência de uma ilusória presentificação do amado: «Falo com o teu retrato, minha criatura, derramando-lhe coisas pueris e profundas, como se fossem flores; choro, rio e, a sentir-te entre os meus braços, canto-te como se de mim houvesses nascido. / E nasces de mim; e para mim e em mim vives, porque para todos os demais estás morto. / Extraí-te do sangue mais nobre do meu coração e uni-te ao meu destino para sempre» (p. 71). 
   Fixada em Madrid, Teresa conseguiu viajar por Londres e Paris, onde se reúniu com as filhas após 5 anos de separação. O regresso das filhas ao Chile agravou-lhe a depressão, acabando por se suicidar, com apenas 28 anos de idade, na véspera do Natal de 1921. Enterrada no Père-Lachaie, Teresa Wilms Montt não caiu totalmente no esquecimento. Em 2009, um filme da realizadora chilena Tatiana Gaviola tentou recriar-lhe parte da vida. Esta antologia faz por cá um trabalho de divulgação que estava por fazer, desbravando caminho para uma obra que merece a atenção de todos quantos se interessem por uma poesia de pendor heterodoxo, mormente exercida por raras figuras femininas que no início do século XX ousaram desafiar convenções, preconceitos e estreitezas de pensamento. À laia de auto-retrato, Teresa Wilms Montt é de uma objectividade sem igual: «Fui crucificada, morta e sepultada, / pela minha família e pela sociedade. / Nasci cem anos antes de ti / mas vejo-te igual a mim. / Sou Teresa Wilms Montt, / e não sou recomendável para senhoritas» (p. 135). Agora que passaram quase 100 sobre a sua morte, não podemos senão ficar agradecidos a Luiza Nilo Nunes por este trabalho de recolha e de preservação num tempo histórico em que ser mulher continua, para mal dos nossos pecados, a ser tantas vezes sinónimo de vítima. Assim o é nas culturas que se dizem superiores como nas outras.

2 comentários:

dama disse...

Leitura de proveito. Obrigada, camarada.

hmbf disse...

Nice. Foi uma das boas surpresas no ano que passou. Bom 2020. Saúde,