Maria Ângela Alvim (1926-1959) era a mais
velha dos cinco irmãos, todos poetas. Pôs fim aos seus dias no ano em que Maria
Lúcia se estreou com XX Sonetos
(1959). Da primeira, a Assírio & Alvim publicou, em 2002, Superfície —
Toda Poesia, com apresentação de Max de Carvalho. Talvez o mais conhecido dos
cinco irmãos seja Francisco Alvim (1938), diplomata de carreira, incluído por
Jorge Henrique Bastos na antologia Poesia
Brasileira do Século XX —
Dos Modernistas à Actualidade (Antígona, 2002). Maurício (1929-?) e Fausto
(1942-1986), que eu saiba, nunca foram publicados em Portugal. De Maria Lúcia Alvim
(1932-2020) publicou a Douda Correria, em Novembro de 2020, esta Antologia
Poética organizada por Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores.
Graças aos dois esta poesia despertou de um silêncio de quase quatro décadas
quando, no decorrer do ano passado, conseguiram convencer a autora a publicar o
inédito Batendo Pasto (Relicário), originalmente
datado de 1982, deixado ao cuidado de Paulo Henriques Brito com a intenção de
apenas ser tornado público postumamente. Não foi, mas quase. A autora do
magnífico Romanceiro de Dona Beja
(1979) faleceu no passado 3 de Fevereiro do ano corrente, vítima de covid-19.
Natural de Araxá, Minas Gerais, Maria Lúcia Alvim residia em Juiz de Fora, para onde foi viver em 2011. Morava numa residência para idosos. Autodidacta, abandonou a escola para se dedicar exclusivamente à poesia e à pintura. Realizou algumas exposições e publicou cinco livros de poesia. Além dos supracitados, Coração Incólume e Pose, ambos em 1968, e A Rosa Malvada (1980). Todos foram contemplados nesta antologia preparada para os leitores portugueses, à qual se acrescentou ainda um conjunto de 13 poemas de um inédito intitulado Rabo de Olho. É por aqui que o leitor começa, percorrendo a restante obra dos poemas mais recentes para os poemas mais antigos. Desconheço o que terá justificado tal opção, a qual por certo nada terá que ver com uma suposta ideia de maturação de uma voz que se apresentou, desde a primeira hora, bastante segura de si mesma, submetendo o discurso, com impressionante naturalidade, a formas rígidas como a redondilha maior e o soneto. Formato, de resto, ao qual a autora regressou amiudadamente com resultados bastante satisfatórios.
Logo no livro de estreia, em versos dedicados à irmã Ângela, insinua-se a temática da morte e de uma insatisfação existencial que ecoará nos livros subsequentes: «se viver não te basta nem situa / a forma de teu mundo inexistente / fizeste mais alheia a espera tua / neste andar pela vida descontente» (p. 138). Esta insatisfação contrasta, porém, com momentos de júbilo que acabam por superá-la a espaços, sobretudo quando o corpo se liga à terra e a natureza desponta com um fulgor compensador. Em Agosto de 2020, numa entrevista ao jornal Tribuna de Minas, declarava a autora: «A terra é o chão. Eu me sinto segura no chão dos matos, da natureza, não no chão das cidades». Isto mesmo se subentende num pequeno poema intitulado Júbilo: «Esfrego minhas mãos no calor do fogo / munida dos primeiros raios da aurora / A esperança / é um sopro / entre a inércia e a brasa / Abro a casa» (p. 21). Além dos sonetos, vários poemas desta antologia são assim curtos, breves emanações de uma beleza que aproxima a língua à natureza como na Capela Sistina o dedo de Adão se aproxima do de Deus.
Maria Lúcia Alvim foi uma poetisa mais dada à introspecção do que a imensa maioria dos autores do seu tempo, recolhida num mundo que era o seu, isolada dos demais, praticando uma poesia singular de recobro da tradição e de um léxico extraordinariamente musical. A rima é frequente nos seus poemas, assim como aproximações divertidas à lengalenga e a jogos de palavras mais ou menos subtis. Paradoxalmente, trata-se de uma poesia fortemente ligada ao corpo e à matéria. A introspecção não redunda em coisa exclusivamente mental, mas antes numa atenção aos efeitos produzidos pelo curso do tempo nos actores com papel na História e reflexões daí decorrentes. Isto é especialmente evidente no Romanceiro de Dona Beja e na incursão que aí se fez pelas origens mineiras, mais uma vez apropriando-se de património perdido, como seja o dos romanceiros medievais. Somos levados a admitir que nesses poemas se procedeu a um retorno do sujeito poético à terra natal, indo para lá de um passado que foi o seu passado físico, existencial, ao encontro das raízes profundas que ligam a mitologia local a uma espécie de mitologia pessoal construída ao longo dos anos. Deixo um exemplo onde esse procedimento se nota, com bastante clareza, nos versos nono e décimo:
FÁBULA
A terra traz o ventre
trepidante
a fecundar, parir, a sepultar —
a fronte prepotente a ostentar
a grinalda de vermes cintilantes.
A terra é o animal pensante — diante
da própria sombra para a conspirar —
das feras tem o olfacto e o paladar
e dos homens a espora penetrante.
— Sementes? São caixeiras-viajantes
de ilusão a ilusão, a germinar.
As raízes são falsas postulantes
e a selva suculenta faz golfar
não só flores, falcões e diamantes
mas dilúvios, leões, rinocerontes.
Maria Lúcia Alvim, in
Antologia Poética, org. Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores, intr.
Patrícia Lino, Douda Correria, Novembro de 2020, p. 82.
Natural de Araxá, Minas Gerais, Maria Lúcia Alvim residia em Juiz de Fora, para onde foi viver em 2011. Morava numa residência para idosos. Autodidacta, abandonou a escola para se dedicar exclusivamente à poesia e à pintura. Realizou algumas exposições e publicou cinco livros de poesia. Além dos supracitados, Coração Incólume e Pose, ambos em 1968, e A Rosa Malvada (1980). Todos foram contemplados nesta antologia preparada para os leitores portugueses, à qual se acrescentou ainda um conjunto de 13 poemas de um inédito intitulado Rabo de Olho. É por aqui que o leitor começa, percorrendo a restante obra dos poemas mais recentes para os poemas mais antigos. Desconheço o que terá justificado tal opção, a qual por certo nada terá que ver com uma suposta ideia de maturação de uma voz que se apresentou, desde a primeira hora, bastante segura de si mesma, submetendo o discurso, com impressionante naturalidade, a formas rígidas como a redondilha maior e o soneto. Formato, de resto, ao qual a autora regressou amiudadamente com resultados bastante satisfatórios.
Logo no livro de estreia, em versos dedicados à irmã Ângela, insinua-se a temática da morte e de uma insatisfação existencial que ecoará nos livros subsequentes: «se viver não te basta nem situa / a forma de teu mundo inexistente / fizeste mais alheia a espera tua / neste andar pela vida descontente» (p. 138). Esta insatisfação contrasta, porém, com momentos de júbilo que acabam por superá-la a espaços, sobretudo quando o corpo se liga à terra e a natureza desponta com um fulgor compensador. Em Agosto de 2020, numa entrevista ao jornal Tribuna de Minas, declarava a autora: «A terra é o chão. Eu me sinto segura no chão dos matos, da natureza, não no chão das cidades». Isto mesmo se subentende num pequeno poema intitulado Júbilo: «Esfrego minhas mãos no calor do fogo / munida dos primeiros raios da aurora / A esperança / é um sopro / entre a inércia e a brasa / Abro a casa» (p. 21). Além dos sonetos, vários poemas desta antologia são assim curtos, breves emanações de uma beleza que aproxima a língua à natureza como na Capela Sistina o dedo de Adão se aproxima do de Deus.
Maria Lúcia Alvim foi uma poetisa mais dada à introspecção do que a imensa maioria dos autores do seu tempo, recolhida num mundo que era o seu, isolada dos demais, praticando uma poesia singular de recobro da tradição e de um léxico extraordinariamente musical. A rima é frequente nos seus poemas, assim como aproximações divertidas à lengalenga e a jogos de palavras mais ou menos subtis. Paradoxalmente, trata-se de uma poesia fortemente ligada ao corpo e à matéria. A introspecção não redunda em coisa exclusivamente mental, mas antes numa atenção aos efeitos produzidos pelo curso do tempo nos actores com papel na História e reflexões daí decorrentes. Isto é especialmente evidente no Romanceiro de Dona Beja e na incursão que aí se fez pelas origens mineiras, mais uma vez apropriando-se de património perdido, como seja o dos romanceiros medievais. Somos levados a admitir que nesses poemas se procedeu a um retorno do sujeito poético à terra natal, indo para lá de um passado que foi o seu passado físico, existencial, ao encontro das raízes profundas que ligam a mitologia local a uma espécie de mitologia pessoal construída ao longo dos anos. Deixo um exemplo onde esse procedimento se nota, com bastante clareza, nos versos nono e décimo:
a fecundar, parir, a sepultar —
a fronte prepotente a ostentar
a grinalda de vermes cintilantes.
A terra é o animal pensante — diante
da própria sombra para a conspirar —
das feras tem o olfacto e o paladar
e dos homens a espora penetrante.
— Sementes? São caixeiras-viajantes
de ilusão a ilusão, a germinar.
As raízes são falsas postulantes
e a selva suculenta faz golfar
não só flores, falcões e diamantes
mas dilúvios, leões, rinocerontes.
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