sexta-feira, 2 de abril de 2021

MARIA LÚCIA ALVIM

 

   Maria Ângela Alvim (1926-1959) era a mais velha dos cinco irmãos, todos poetas. Pôs fim aos seus dias no ano em que Maria Lúcia se estreou com XX Sonetos (1959). Da primeira, a Assírio & Alvim publicou, em 2002, Superfície Toda Poesia, com apresentação de Max de Carvalho. Talvez o mais conhecido dos cinco irmãos seja Francisco Alvim (1938), diplomata de carreira, incluído por Jorge Henrique Bastos na antologia Poesia Brasileira do Século XX Dos Modernistas à Actualidade (Antígona, 2002). Maurício (1929-?) e Fausto (1942-1986), que eu saiba, nunca foram publicados em Portugal. De Maria Lúcia Alvim (1932-2020) publicou a Douda Correria, em Novembro de 2020, esta Antologia Poética organizada por Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores. Graças aos dois esta poesia despertou de um silêncio de quase quatro décadas quando, no decorrer do ano passado, conseguiram convencer a autora a publicar o inédito Batendo Pasto (Relicário), originalmente datado de 1982, deixado ao cuidado de Paulo Henriques Brito com a intenção de apenas ser tornado público postumamente. Não foi, mas quase. A autora do magnífico Romanceiro de Dona Beja (1979) faleceu no passado 3 de Fevereiro do ano corrente, vítima de covid-19.
   Natural de Araxá, Minas Gerais, Maria Lúcia Alvim residia em Juiz de Fora, para onde foi viver em 2011. Morava numa residência para idosos. Autodidacta, abandonou a escola para se dedicar exclusivamente à poesia e à pintura. Realizou algumas exposições e publicou cinco livros de poesia. Além dos supracitados, Coração Incólume e Pose, ambos em 1968, e A Rosa Malvada (1980). Todos foram contemplados nesta antologia preparada para os leitores portugueses, à qual se acrescentou ainda um conjunto de 13 poemas de um inédito intitulado Rabo de Olho. É por aqui que o leitor começa, percorrendo a restante obra dos poemas mais recentes para os poemas mais antigos. Desconheço o que terá justificado tal opção, a qual por certo nada terá que ver com uma suposta ideia de maturação de uma voz que se apresentou, desde a primeira hora, bastante segura de si mesma, submetendo o discurso, com impressionante naturalidade, a formas rígidas como a redondilha maior e o soneto. Formato, de resto, ao qual a autora regressou amiudadamente com resultados bastante satisfatórios.
   Logo no livro de estreia, em versos dedicados à irmã Ângela, insinua-se a temática da morte e de uma insatisfação existencial que ecoará nos livros subsequentes: «se viver não te basta nem situa / a forma de teu mundo inexistente / fizeste mais alheia a espera tua / neste andar pela vida descontente» (p. 138). Esta insatisfação contrasta, porém, com momentos de júbilo que acabam por superá-la a espaços, sobretudo quando o corpo se liga à terra e a natureza desponta com um fulgor compensador. Em Agosto de 2020, numa entrevista ao jornal Tribuna de Minas, declarava a autora: «A terra é o chão. Eu me sinto segura no chão dos matos, da natureza, não no chão das cidades». Isto mesmo se subentende num pequeno poema intitulado Júbilo: «Esfrego minhas mãos no calor do fogo / munida dos primeiros raios da aurora / A esperança / é um sopro / entre a inércia e a brasa / Abro a casa» (p. 21). Além dos sonetos, vários poemas desta antologia são assim curtos, breves emanações de uma beleza que aproxima a língua à natureza como na Capela Sistina o dedo de Adão se aproxima do de Deus.
    Maria Lúcia Alvim foi uma poetisa mais dada à introspecção do que a imensa maioria dos autores do seu tempo, recolhida num mundo que era o seu, isolada dos demais, praticando uma poesia singular de recobro da tradição e de um léxico extraordinariamente musical. A rima é frequente nos seus poemas, assim como aproximações divertidas à lengalenga e a jogos de palavras mais ou menos subtis. Paradoxalmente, trata-se de uma poesia fortemente ligada ao corpo e à matéria. A introspecção não redunda em coisa exclusivamente mental, mas antes numa atenção aos efeitos produzidos pelo curso do tempo nos actores com papel na História e reflexões daí decorrentes. Isto é especialmente evidente no Romanceiro de Dona Beja e na incursão que aí se fez pelas origens mineiras, mais uma vez apropriando-se de património perdido, como seja o dos romanceiros medievais. Somos levados a admitir que nesses poemas se procedeu a um retorno do sujeito poético à terra natal, indo para lá de um passado que foi o seu passado físico, existencial, ao encontro das raízes profundas que ligam a mitologia local a uma espécie de mitologia pessoal construída ao longo dos anos. Deixo um exemplo onde esse procedimento se nota, com bastante clareza, nos versos nono e décimo:
 
FÁBULA
 
A terra traz o ventre trepidante
a fecundar, parir, a sepultar
a fronte prepotente a ostentar
a grinalda de vermes cintilantes.
A terra é o animal pensante diante
da própria sombra para a conspirar
das feras tem o olfacto e o paladar
e dos homens a espora penetrante.
Sementes? São caixeiras-viajantes
de ilusão a ilusão, a germinar.
As raízes são falsas postulantes
e a selva suculenta faz golfar
não só flores, falcões e diamantes
mas dilúvios, leões, rinocerontes.

 
Maria Lúcia Alvim, in Antologia Poética, org. Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores, intr. Patrícia Lino, Douda Correria, Novembro de 2020, p. 82.

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