domingo, 13 de novembro de 2022

TREZE

 
   13. Mudança de casa. Ainda hoje sonho com a outra, lugar primitivo que vi ser transformado ao longo de uma década como entretanto reparei estar o corpo a transformar-se. O buço, a voz, eram a prova mais evidente do processo. Uma casa voltada para dentro, para um pátio interior onde se percebia o passar do tempo nas feições de uma árvore. Quem julgar que uma árvore não tem feições não percebe nada disto. Ainda hoje sonho com aquela pereira e mordo as pêras e sinto-lhes o gosto na boca. Agora temos jardim voltado para fora, um pouco como as jóias que ornamentam os dedos, as orelhas e o pescoço das irmãs. E temos escadas que dão para quatro andares, cave, rés-do-chão, primeiro andar, sótão. E temos quarto de hóspedes. Tudo se me apresenta excessivo, maior do que o necessário, embora ainda não me apoquentem estigmas políticos nem me inquietem as ligeiras manifestações de burguesia em paulatina ascensão. Só mais tarde, muito mais tarde, me confrontarei com tais temas, percebendo de modo efectivo que as origens sociais, em grande parte resumidas num apelido, são, neste país, como ferro em brasa no cachaço bovino. Somos essencialmente o lugar de onde viémos, para o bem e para o mal. O que sobra é a vontade que em cada um se forma de desbravar caminho. Naquele tempo, eu estava mais interessado na varanda do meu quarto. Imaginem o efeito que pode ter na cabeça de um pré-adolescente passar de uma casa em que todos partilhavam o mesmo banheiro para outra em que cada qual se lava no seu. Além do mais, tinha um quarto com varanda. Em noites quentes de verão, podia adormecer ao relento com os olhos postos nas estrelas. Em noites frias de inverno, podia aquecer-me a espreitar a chuva que escorria pelo algeroz.

Sem comentários: