quarta-feira, 24 de maio de 2017

SUPERTUBOS

   Quem frequente este weblog saberá da admiração que nutro pela poesia de Hugo Milhanas Machado (n. 1984), declarada em textos dedicados a livros tais como Clave do Mundo (Sombra do Amor, 2007) e As Junções (Artefacto, 2010) ou a plaquettes das quais Plato chico é apenas um exemplo (Edição do autor, 2012). Sinto-me tanto mais à vontade quanto não conheço o autor pessoalmente, nada me influencia que não seja o gosto alimentado pelos seus versos. Hugo Milhanas Machado estreou-se em 2005 com Poema em forma de nuvem (Gama), tendo, desde então, publicado regularmente em editoras de circulação restrita. Supertubos (Enfermaria 6, 2015) colige poemas vindos a lume entre o ano de estreia e o da publicação em causa. É uma excelente janela sobre um trabalho que tem vindo a ser desenvolvido com incontestáveis aprumo e coerência, podendo aqui servir uma breve reflexão sobre discussões recentes acerca da poesia portuguesa contemporânea.
   Estamos na presença de um autor com intensa actividade académica, doutorado em Filologia pela Universidad de Salamanca onde é docente. Não obstante, em nada que seja óbvio a sua poesia se deixou contaminar pelo academismo notório de muitos dos seus contemporâneos. Um dos aspectos mais evidentes desse academismo é a hegemonia da intertextualidade, a qual ultrapassou os domínios da alusão e do diálogo para se transformar em pastiche e bricolagem. Na poesia coligida em Supertubos essa hegemonia foi superada pela busca da singularidade, almejando-se uma muito particular forma de tratar a palavra poética arreigando-a à experiência vivida sem limitá-la ao retrato ou à confissão emotiva. Tal prática remete-nos para um confronto tantas vezes equívoco entre as noções de complexidade e simplicidade no discurso poético. Sendo esta uma poesia altamente complexa, não deixa de acolher no seu caudal lírico as coisas simples da vida.
   Complexa, desde logo, pelo labor sintático que por vezes nos coloca perante um discurso aparentemente desordenado. Depurada nos adjectivos, com um sentido gramatical apoiado mais no ritmo do que na melodia, coloca-nos amiúde desafios à leitura que apelam a uma convergência natural entre o escrito e o lido: «o poema não persegue resultado» (p. 65). E é precisamente por não persegui-lo que dispensa as fórmulas, assentem elas na ironia como modo de sedução ou no absurdismo verbal enquanto estratégia encantatória. Portanto, longe de se tronar hermética esta é uma poesia complexa. Complexa em si mesma, naturalmente, sem que para tal recorra a um léxico desusado ou a uma exaustiva multirreferencialidade. Antes pelo contrário, como fica evidente nos poemas que trazem à tona o linguajar de uma certa fauna da faina marítima: «ó camandro de paisagem» (p. 28), «era da gente ali morrer / com os olhos assim» (p. 38), «Tá claro que o amor é assim / cravado de algas» (p. 50). 
   Por fim, mas não menos relevante, julgo dever sublinhar como nos poemas de Hugo Milhanas Machado vislumbramos uma alegria de viver que nada tem que ver com a pretensão de confinar à melancolia o tom geral da poesia portuguesa contemporânea. Não deixa de ser curioso constatar, contudo, que dois dos poetas portugueses da nova geração acolhidos com maior entusiasmo por crítica e público também não encaixem nesse gavetão da melancolia. Refiro-me a Miguel-Manso (n. 1979) e a Matilde Campilho (n. 1982). Os poemas de Supertubos são geralmente luminosos, referem-se a momentos de descontracção e à suspensão das horas aziagas. Basta olhar para o índice de primeiros versos que logo encontramos palavras ou expressões tais como sossego, entusiasmo, bom dia, luz, dançar, festa, cantam, gostar, numa celebração do movimento e da passagem dos dias, dos amigos e dos encontros fortuitos, que nada tem de melancólica. Quando muito, nostálgica. Mas naquele sentido de quem lembra as férias do Verão ou recorda uma paixão antiga e diz: «vai embora dia tão triste» (p. 80). 
   Em suma, aí estamos nós perante uma poesia nada académica, apesar da formação do seu autor, complexa mas acessível, luminosa, solar, alegre, se quiserem, cujo maior mérito é fazer-se por si mesma, assumindo-se na sua singularidade, sem concessões às tendências que no seu tempo pretendem impor-se como se nada mais houvesse:

O ferro na figura

O rei aparece
e a metáfora é dos feiticeiros
essa gravidade por ritmos e flechas
nas grandes manifestações

É uma sobra da figura e na
mais precisa cor a dimensão de terra
a quantidade vai descendo na tradição
quando as flechas começam a cair

Eu não escuto onde tu dizes
eu não tenho formação de ferro
eu não organizo limpo tanto texto
em lance todo de puxar futuro

E se palavra a caçadora e por grossas figuras
vou tornar às tarefas do país
o ambiente nas festas merece
minhas canoas nessas frases tuas

É que nunca houve bem o descanso
e se concede mais luz na espera da sílaba
um material é duro por identificação
arrasta muitos a falar

Só penso nas remadas
nuns sumos para o lanche
que na divisão de movimentos
ninguém venha fechar olho



Hugo Milhanas Machado, in Supertubos: Poemas 2005-2015, Enfermaria 6, Dezembro de 2015, p. 98.

8 comentários:

  1. Deste autor li o «Junções» e gostei, concordo com o facto de ser uma poesia solar, e também não o conheço pessoalmente. Fiquei aqui a pensar nisto: «Um dos aspectos mais evidentes desse academismo é a hegemonia da intertextualidade, a qual ultrapassou os domínios da alusão e do diálogo para se transformar em pastiche e bricolagem.» Será que falamos de intertextualidade nos dias de hoje? Ou estaremos perante o efeito nefasto do hiperlink? Digo isto, porque muitas vezes as alusões, referências disparam para todo lado, não apenas de texto para texto, mas para música, fotografia, filmes etc. Se calhar estou enganada, mas sinto que o hiperlink funciona como uma dispersão da informação própria do acesso que se tem a ela través da internet e dos media actuais, que poderá ter ou não efeitos no modo como as pessoas se relacionam com o mundo, também na criatividade. Digo isto, porque faço parte de quem viu nascer o hiperlink, mas quando olho para os meus sobrinhos, que já nasceram nisto, acho que eles funcionam de outro modo, fico um pouco baralhada.

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  2. Intertexto ou hiperlink, vamos dar ao mesmo. São as referências a pesar em demasia sobre a obra, a vida ausente ou, pior, transformada em mera literatura. Já não é uma existência de papel, como dizia o Al Berto, é o papel da inexistência.

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  3. Estou a entender perfeitamente :)

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  4. Desculpem-me entrar na conversa. Intertexto e hiperlink não dão no mesmo. Há estudos sérios comprovando como o hiperlink altera o funcionamento do cérebro. Altera o comportamento. Já intertexto pode ser "referências a pesar em demasia sobre a obra", mas acrescenta informação ao invés de dispersar/criar um comportamento em que o indivíduo não consegue se concentrar por mais de alguns minutos em determinado conteúdo.

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  5. Embora julgue estarmos todos conscientes dessas diferenças, agradeço o seu comentário.

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