sexta-feira, 12 de abril de 2019

CARIDADE ROMANA


São inúmeras e bastante desiguais as representações da caridade ao longo dos tempos. Encontramos uma das mais controversas em Sete Obras de Misericórdia (1607), de Caravaggio. Diz-se que era violento e grosseiro, que escolhia os modelos entre gente comum. Não perderemos nada em mantê-lo por perto. O quadro em causa envia-nos para o mito da caritas romana, com a figura feminina de Pero a amamentar Cimon, seu pai, enquanto ele aguarda pela morte na clausura. Incesto e altruísmo misturam-se nesta história, a qual se conta às criancinhas enquanto exemplo de piedade. José Emílio-Nelson (n. 1948), que há muito mantém uma relação de proximidade com a pintura na sua poesia, não recupera exactamente esta história em Caridade Romana (Abysmo, Novembro de 2018), mas de algum modo a reconfigura no que ela possa conter de extremamente lascivo: uma filha a amamentar o pai.
   Este pequeno livro é todo ele excessivo e voluntariosamente blasfemo, quer na forma de abordagem do ágape místico, quer na associação que dele faz ao sadismo e ao masoquismo. A evocação de Marguerite Porete (1250-1310) no prólogo, mística francesa condenada à fogueira, autora de O Espelho das Almas Simples, considerada pelo Tribunal da Inquisição como “herética recidiva, relapsa e impenitente”, dá conta do recado: esta é mais uma obra do diabo. Escrito como se de uma peça teatral se tratasse, desafiando todas as normas da construção dramática, intercalando múltiplas vozes com enigmáticas e labirínticas didascálicas, Caridade Romana coloca em cena modelos requisitados nas obras do Marquês de Sade, nomeadamente na Histoire de Juliette, ou Les prospérités du vice (1801), retomando a hipótese do vício como caminho para a santidade.
   Lembremos que a Justine, irmã de Juliette, mais não coube do que uma desesperada existência de abusos por tão recta e virtuosa procurar ser. A Besta e o Velhorro El Señor que se confrontam ao longo da parada marcam o ritmo de uma interpelação repleta de cenas pornográficas, onde não faltam actos necrófilos e coprofágicos, festim de bestialidade espiado pelos flashes de uma Leica fetichista. «Julie, estremecida, celebra Sade», celebra-o e actualiza-o à luz das expiações e actos de contrição levados agora a cabo nas redes sociais. Alguns separadores isso mesmo indicam, sugerindo a transcrição de diálogos facebookianos: «Continue a postar retratos seus, serão sacrificados ao meu narcisismo. (…) Vou actualizar a foto de perfil. (…) A mim ninguém pede adesão, só às vezes algum conhecido».
   Blasfema, heterodoxa, iconoclasta, depravada, heresiarca, esta é uma obra que se lê nas entrelinhas de um fascínio pela maldade e pelo vício, gozo de tudo quanto afronta a moral e os bons costumes, uma obra que revira os mitos para desmistificar, desnudando as faces luxuriante e concupiscente do corpo que deseja. O transe é paixão, o êxtase é orgasmo, a oração é masturbação, a genitália é o terço que nos redimirá do pecado: «Julie é estuprada por Mme Delbène, sempre com o seu godemiché, e é urdida cerimoniosamente com doçura quando cede a desvendar insignes falsidades. À Emma evocam a noção de pertença e tentam sancionar o comportamento avesso aos bons costumes. Claude, frente ao espelho, une três dedos e, em círculos, perdidamente, os afunda em si, e fecha as pernas e logo as escancara, e e… Olympe diz-se ‘ensopada’ e faz carícias a El Señor lambendo-Lhe mais abaixo do ‘escopro’. Laurette é enrabada por Delcour, Genande, Noirceuil, alternadamente. Antonino cede o ‘gel íntimo’. Veio-se» (p. 34).
   Desta orgia de personagens e imagens retiramos também uma fé, a fé de um corpo que se liberta da doçura conventual. O leite que alimenta aquele que em clausura aguarda pela morte pode assumir diversas proveniências. Aqui, a salvação ejacula-se. No prazer da carne está a via de uma santidade que já nada pede ao sacrifício, que não cobra a existência, uma santidade amoral, por assim dizer, na medida em que subverte os padrões contemplativos e ideais de um erotismo sem corpo, insípido, inodoro, anódino, espiritual. Neste sentido, podemos dizer que à Caridade Romana de José Emílio-Nelson corresponde uma glorificação da carne, matéria de que é feito o corpo que deseja, a carne já não apenas enquanto maná da morte anunciada, prisão do espírito, mas antes como lugar de libertação do desejo e desprendimento de uma moral castradora.

3 comentários:

JOSÉ EMÍLIO-NELSON disse...

Excelente leitura: inteligente e informada. Abraço

hmbf disse...

Mais um livro desafiante, meu caro. Parabéns.

Daniel Gomes disse...

bastante iconoclasta