quinta-feira, 4 de junho de 2020

MANUEL CINTRA (1956-2020)




Sobre Alçapão (& etc., Maio de 2009): aqui. Sobre Não Sei Nunca por Onde (Quasi Edições, Abril de 2004): aqui. Um poema de Do Lado de Dentro: aqui. E agora outro:

Inépcia. Asneira. Incongruência. O canto, três ângulos rectos.

Meninas em quartos de banho de rádio aceso. Lágrimas camufladas em banheiras de água quente. Desgostos infantis, becos maternos. Meninas em rádios de banho em quarto aceso.

Outonos aflitos, inverno fora, de pantufas molhadas gritando em desvario: «Perdi um dia! Perdi um dia!», entretanto percorrendo dois.

O tempo escoa pela banheira da falta de tacto em sentido único. Andamento que será talvez só um excerto da sinfonia. Não sinto os membros da rua, corpo sem ossos. Caem-lhe calças aos tornozelos, ridícula, coxa, desaprendeu a andar.

Queria eu acordar, mas não tenho sono. De braços abertos à utopia. Hipotético ingénuo. De umbigo ao léu.

Sentir-me longo, desejar extensões, e desembocar entre três ângulos rectos de vidro pronto a quebrar. Conter, conter.

Corrida. Não suporto esta pequena lentidão. Os mais olhos que barriga como fogo por arder. Perdi a receita. Crença nas metamorfoses, após anos a fio a observar girinos brotar para rãs. (a rã não é uma beleza, mas melhor que nada. É verde.)

Sorva-se uma raiz, plante-se nesta clareira.
Esta clareira. Esta clareira. Eu acredito nesta clareira.

Manuel Cintra, in Do Lado de Dentro, Editoria Presença, colecção forma, n.º 13, 1981, pp. 27-28.

Sem comentários: