sábado, 29 de agosto de 2020

UM DIA


 

Um dia não escreverei mais. Um dia não escreverei mais esta palavra mais. Um dia não escreverei mais este texto. Porque um dia não escreverei. O que já está escrito. Nem mais nem menos,. Porque este porque não pertence a este jogo. Um dia não escreverei ainda mais este poema.

Agora chega uma palavra que não é mais esta que escrevo. Porque a palavra esta não é esta nem um dia é o dia em que sequer escreverei alguma coisa mais. Alguma coisa é que é semelhante a algures.

Muda-se a semelhança muda-se o disfarce muda-se o espaço no espaço de uma só folha de papel. Escrevo. Já não escrevo agora o que comecei a escrever aqui algures. Porque não se escreve duas vezes a mesma coisa e muito (muito) menos a mesma palavra (palavra) porque. Já não há causa (coisa) alguma que motive algures o que alguma vez foi/é sentido durante a escrita da mesma (mesma) palavra.

Escrevo esta palavra para que se veja outra palavra. Assim porque é diferente o sentido (sentimento) é diferente o sentimento (sentido). Isto porque a razão não se aprisiona nem (nem) numa metáfora é liberta. E muito menos eu sei o que escrevo quanto mais porque. 

E no entanto prossigo (persigo) na expectativa de saber porque. Porque não é antes (mas) depois que o texto é. A maior densidade liquefaz-se como ainda contida dentro da caneta. Há uma subtil esperança em tudo o que aí se contém. Que isto já esteja escrito incluindo a dúvida de que já esteja escrito. A originalidade impregna-se do desprezo do emprego da razão que está obviamente longe (longe) do sentido apolíneo do polo oposto escrito com as mesmas letras que estão dentro líquidas do corpo da caneta. Isto é um anacronismo porque as canetas já não escrevem nem já (já) nem antes (nem) alguma vez escreveram tal como nas rochas paleo-neo-líticas duras demais escuras de mais para uma tinta preta. Para uma tinta branca que agora se espalha nas teclas informáticas e os electrões viajam.

Um ponto final ficaria aqui bem. Ponto porque final. Final porque se recomeça sempre a despalavra e os extremos nunca se trocam mas os meios confundem-se pelos pontos.

Um dia não escreverei mais. Um dia mais e não escreverei. Porque hoje é um dia que se transfere para um outro dia. Um lugar que se adia para outro ódio. Uma hora liberta para outra fuga. Um centímetro extenso de galáxias expansivas. Um infinitamente pequeno de sentimentos perfeitamente claros e inexplicáveis. Um dia não escreverei mais esta palavra mais. Nem esta palavra menos. Nem menos esta palavra nem. Um dia nem. (Nem este texto faz parte deste texto). Nem.


E. M. de Melo e Castro (n. 1932 - m. 2020), in Entre o Rigor e o Excesso: Um Osso, Afrontamento, 1994, pp. 81-82. «E. M. de Melo e Castro é um dos nomes mais interventivos do Experimentalismo português. Desde o início da década de 60, tem apresentado uma intensa e representativa actividade, quer no âmbito da criação poética, quer no campo da reflexão teórica sobre a poesia experimental, tendo sido, no início, o seu principal teorizador. Em 1962, a publicação de Ideogramas constitui um marco: trata-se do primeiro livro de poesia escrito em Portugal de acordo com os princípios programáticos do Concretismo. São patentes, num primeiro momento, as ligações de Melo e Castro aos concretistas brasileiros (grupo de Noigandres), mas a obra deste autor vai delineando um percurso singular que dialoga com referências intertextuais de outras latitudes. E. M. de Melo e Castro tem desempenhado um papel decisivo no que diz respeito à divulgação no estrangeiro da poesia experimental portuguesa» (Carlos Mendes de Sousa e Eunice Ribeiro, in Antologia da Poesia Experimental Portuguesa, Angelus Novus, 2004). «Com Maria Alberta Menéres organizou, actualizada em 1961, em 1971 e em 1979, a mais informativa Antologia da (então) Novíssima Poesia Portuguesa, tem uma já considerável bibliografia de textos originais, entre eles: Entre o Som e o Sul, 1960; Mundo Mudando, Ideogramas, 1962; Concepto Incerto, poesia visual, 1977; Autologia - Poemas Escolhidos - (1958-1978), 1983. Reunião de 40 anos de obra: Trans(a)parências, 1990» (A. J. Saraiva e Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). 

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