Apresento-vos Lázaro de Tormes, filho de Tomé e de Antona,
naturais de Tejares, aldeia de Salamanca. Dele sabemos o que autor anónimo do
século XVI legou à posteridade. Lazarillo de Tormes, suas poucas venturas e incontáveis
desventuras, há muito vem merecendo por cá atenções de tradutores distintos. A
versão de Aníbal Fernandes encontra-se disponível na Sistema Solar, a de José
Bento na Assírio & Alvim, mas outras foram sendo dadas à estampa ao longo
dos tempos. O que houve de especial na vida de Lazarinho, minhas filhas, é o
que de mais essencial vislumbramos na vida de todos quantos à face da Terra
podem ser chamados de homens: fome. Nenhuma necessidade motiva a acção como a
fome, deslocando-nos tanto à condição de animais selvagens como à de artistas. Vós,
que graças à fortuna do meio em que nascestes nunca tivestes de passar
fome, ficai sabendo quanto de indigno há na virtude quando a fome ataca alguém.
Perseguido, preso e torturado, o pai de Lázaro partiu deste mundo 'inda ele era criança. Teve a mãe de se prostituir com um negro para sobreviver, até
descobrir-se que os bens que este lhe trazia eram furtados ao patrão. Com pai,
mãe e padrasto condenados, foi o nosso desgraçado herói encontrar
desenrascanço em patrões sucessivos, qual deles pior que o outro, exploradores
da miséria alheia. Um mal nunca vem só, diz o povo e não temos razões para
discordar, particularmente quando calha o mal recair sobre quem já desventurado
é. Eis algo que podeis conservar entre os axiomas desta vida, a miséria atrai
miséria. Assim é, desde logo, porque os miseráveis tendem a ser inimigos de si
mesmos, voltando-se mais facilmente uns contra os outros do que contra quem os
explora. Assim é, também, por haver sempre gente disponível para colher ganhos e proveitos da fome alheia, fazendo-se patrão de quem nada tem acenando
com promessas retardadas e paraísos ilusórios. Desesperando por vida
melhor, os Lazarinhos deste mundo tornam-se servos sem ingenuidade nem
inocência, antes com a manhosice e a esperteza que leva a patinar na avareza
dos Senhores. Para chegarem a algum lado não saem do mesmo sítio, roem unhas
na vã esperança de assim conseguirem matar a fome, aceitam a indigência como salário duma pobreza ainda mais funda. Tudo quanto façam para escapar dos fojos será
tomado como aldrabice de trapaceiros desprevenidos, os quais se denunciam tanto
por não reconhecerem o seu lugar no mundo como por desperdiçarem tempo a
sonhar com lugares reservados aos outros. Estarei a ser demasiado fatalista,
minhas filhas? Vede como salivam por esmolas os imigrantes que ao redor de nós
chegam para apanhar pêras, matar frangos, amassar pão, colher framboesas, vede
como no campo, curvados, eles são as vítimas de um chicote invisível que os
açoita diariamente sob o silêncio astuto de quem com eles lucra. Quem com eles
lucra? Todos nós, sim, todos quantos entre nós se calam à vileza desta economia
do desamparo. A isto leva tanto a fome de uns como a ganância de outros, mas
igualmente a indiferença da maioria que assobia para o lado enquanto puder
aproveitar-se das fraquezas de uns e das malfeitorias dos outros. Lázaro chorou a
sua desgraçada vida passada e as suas próximas mortes futuras ao serviço de
cegos trapaceiros, clérigos oportunistas, escudeiros violentos, frades sovinas,
buleiros intrujões, capelões hipócritas e aguazis pretensiosos. Naquele tempo
eram estes os poderes que exploravam. Passados cinco séculos, não é diferente se
por uns substituirdes banqueiros e por outros directores executivos, administradores
e gestores, agiotas, usurários. Assim é, minhas filhas, que a lição a retirar
desta Vida de Lazarinho Tormes se preserva actual como ao longo dos séculos os rochedos
não perdem validade. Mais do que um destino que determina as aflições é o lucro
que delas obtêm os Senhores aquilo que as perpetua entre os desgraçados. Se
quiserdes livrar-vos disto, deixai de dar lucro. Eis o conselho que tenho para
vos oferecer.
2 comentários:
Lembro-me que há alguns anos você publicou os 100 livros recomendados às suas filhas. Muitos deles eram os meus preferidos.
Abraços do Brasil
Saúde.
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