sábado, 8 de maio de 2021

UM POEMA DE FRANCISCA CAMELO

 


photoautomat

dizem-te que a vida
não tem tamanho
que também não tem
preço mas pedem
que a registes
num espaço concentricamente
isolado dos outros: inscrevem-te
numa cidade com regras
estranhas pedir desculpa
muitas vezes não sorrir
demasiado falar
alto em transportes
públicos nem pensar
quem decide que posso morar
aqui não sou eu
são algoritmos de leis
incompreensíveis quem
escolhe onde arquivar
o meu corpo quem
define onde cabe o meu
tamanho em que casa
fico com o quarto mais
pequeno ocupar o canto
que incomoda menos
pagar para não ser
notada, sim
eu já assinei contractos
que não tinha como ler
e com honestidade,
é mais ou menos isso
estar viva: assinar
acordos nunca
traduzíveis, corpos impossíveis
de cumprir gente desfigurada
porque a solidão fez 
de todos
o que quis e
um dia entendemos
quando obrigados a
beijar fronteiras que
há um peso, sim, para
todas as medidas:
a minha vida
por exemplo
pesa setenta e um quilos
distribuídos por cinco
caixotes tamanho L
roupas sapatos livros e o que sobra
- photoautomats
um caderno algum dinheiro -
carego comigo como quem
dá a volta ao mundo
ou atravessa a rua para
tomar um café. a minha vida
custa cento e quarenta e cinco
euros e noventa e cinco cêntimos
para ser transladada
dois mil e oitenta e quatro
quilómetros, talvez mais,
nunca medi o valor exacto
do desapego. quanto custará
um caixão para um metro e
cinquenta e oito centímetros
sem sapatos? imagino que seja
apesar de tudo
mais barato existir
e como no ringue de boxe
(flash)
alimento a antecipação
de mais um murro
(flash)
bem no fundo do estômago
(flash)
o branco
violento
e imponderável
(flash)
daquela
photoautomat
no primeiro dia de neve do ano
às duas da manhã
em kottbusser tor.


Francisca Camelo, in Photoautomat, Enfermaria 6, Agosto de 2019, pp. 50-52.

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