domingo, 16 de janeiro de 2022

FAZ PARTE

Faz parte do processo, a distribuição de folhetos, sessões de esclarecimento — quem vai? quem pergunta? quem mantém viva a curiosidade? —, arruadas e comícios de rua, visitas a locais emblemáticos, aqueles que dizem estratégicos, reuniões com entidades diversas para diagnóstico de vícios e de virtudes. Faz parte. Se não fosse assim, como podia ser? A imprensa anda atrás do soundbite, da frase bombástica, do momento espectacular que possa gerar polémica e dê de comer a comentadores e tesão às audiências. O soundibite é o viagra da imprensa.
 
Quando o João Oliveira passou por Caldas da Rainha, numa iniciativa em que era suposto sublinhar a importância do investimento na ferrovia, nomeadamente, para o caso, a requalificação da Linha do Oeste, nem uma pergunta lhe fizeram sobre o tema. Eu não ouvi, e estava perto. Com as objectivas apontadas, tantas que até senti medo, não fossem disparar bazucas, a conversa foi sobre paixonetas e divórcios, casamentos e uniões de facto, tudo na base de cenários futuros incertos. Sobre o que importava, a Linha do Oeste, nem uma pergunta. Como lidar com isto?
 
O que passa para fora é o coelho de um e o gato de outro, os cães daquele e o lagostim daqueloutro. Até me admira ainda não ter aparecido um com polvos domésticos, dos que adivinham resultados. É o que passa para fora, como se não houvesse mais nada. Há mais, mas não passa. Porquê? Quando ligo a televisão e vejo gente bem paga perdendo tempo a cogitar sobre as cores das gravatas dos candidatos, o penteado novo da Catarina, as expressões faciais do Rio ou as sílabas engolidas pelo Costa, sinto ainda mais visceralmente uma ideia que há muito me persegue: o espectáculo tomou conta do mediático. Contra isto, fazer o quê? Ceder? Apanhar o embalo? Resistir?
 
Na rua, sobretudo nas feiras, onde o povo é mais dado à conversa, tenho ouvido frequentemente: vocês são todos iguais, primeiro, vocês são sérios de mais, segundo. Os primeiros são os políticos, de um modo geral, os segundos são os comunistas, em particular. Ser sério de mais é uma desvantagem, encarar a política com seriedade já não é um valor adquirido. Na televisão, uma tolinha refere-se a João Oliveira com carinho porque ele não é aquele comunista seco que passa a vida a ler Marx em vez de se divertir — que puta de imagem! —, mas um tipo simpático que até vai ao programa do Araújo Pereira dar baile em matéria de sentido de humor. Disto, para fora, passa o quê? Que somos, nós, os comunistas, demasiado sérios. E as pessoas, de um modo geral, reconhecem essa seriedade, mas julgam-na desvantajosa num meio onde ser sério é partir em desvantagem.
 
Eis a maior das contradições com que nos deparamos neste tempo: um discurso inflamado contra a corrupção a par de uma desvalorização da seriedade. São todos corruptos. Menos vocês, os comunistas, que são sérios de mais. Logo, não servem. Paradoxal? Nem por isso. Não basta ser, há que parecer, berrando muito, batendo com os pulsos no peito, adoptando a antilógica daqueles que capitalizam a ideia feita. Acreditem: vale mais uma mentira dita com convicção do que uma verdade dita a titubear. É esta a realidade com que nos defrontamos. Querem-nos iguais aos outros, mas não somos, não está na nossa natureza, porque continuamos fieis a convicções, contra esse tacticismo pífio que leva a um discurso às segundas e a outro às terças.
 
É uma merda, é, perceber que os media não têm interesse nenhum em debater o aumento do salário mínimo, 1% do orçamento de estado para a cultura, investimento no SNS, etc, pois isso afasta o espectador a quem a política deve ser oferecida como um Big Brother, isto é, um reality show. O resultado do reality show da política, temo, é cada vez mais abstencionismo e desinteresse. Entre aqueles que se mantêm atentos, há deles que são movidos pelo clubismo, outros pelo puro ódio, há quem vá atrás de modas e há, cada vez menos, quem pondere programas e propostas e vote por convicção. Tudo é táctica. Os outros, demovidos e desinteressados, vão continuar a queixar-se da corrupção, da injustiça, da impunidade, sem fazerem o que quer que seja no sentido de combaterem tal estado de coisas. Andam por cá para dizer mal e pronto. Acham que não vale a pena. Afinal, os políticos são todos iguais. Os eleitores também. Uns mais do que os outros, talvez.
 
O ideal, bem vistas as coisas, era cada indivíduo ser o seu próprio partido. Íamos a votos com um boletim enrolado onde teríamos de encontrar o nosso próprio nome. Dez milhões de candidatos. Tenho amigos que dizem não se rever em ninguém senão neles próprios, o que lamento. Eu, como não tenho assim tão boa auto-imagem, vou procurando nos outros virtudes que não tenho, confiando-lhes capacidades que não possuo. É também uma questão de humildade. Isto tudo para dizer que temo pelo estado a que chegámos. O desinteresse interessa-me, não porque nele me reveja, obviamente, mas por ser para mim um mistério que só nos lembremos de que a gatunagem existe quando nos vão directamente ao bolso. Por isso estou com aqueles que, contra o estado actual das coisas, continuam a ter como o seu principal valor a seriedade, o ideal, a abnegação em prol de uma sociedade mais justa, contra o capitalismo selvagem em que nos querem afogar.

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