quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

UM POEMA DE LEVI CONDINHO

 


QUOTIDIANO LISBOETA — SEM MÚSICA

À porta da igreja
alguém chora um morto
pode ser verdade ou a velha ficção das lágrimas
esse choro que deste autocarro vislumbro

caminho agora pelo jardim
onde tíbios melros olham desconfiados
entre a relva e a promiscuidade dos lixos
— a lusa gratidão de viver 

um velho escarra tosse-se muito
gente estropiada pobre de ser e de fazer-se ser
o pequeno portal manuelino esboroando-se
o salitre o monóxido a indiferença

aqui jaz o simulacro de um jovem jacarandá
decepado pelas mandíbulas do nosso heroísmo
tendo por túmulo
o tufo de serralhas merda de cão latas de sprites

anseio essas lisas praias marés vivificantes
pequenos peixes roçando os joelhos
aquela maresia que a infância não esqueceu
— encontro plásticos jornais sarnentos pensos fraldas — troféus do bem-estar

clamo pelo afundamento de tudo isto
ergo os braços abano a cabeça recuso este estatuto
em vão me eriço me desgasto
morre-me à nascença a raiva sufocada na garganta

foi daqui que partiram
"para dar novos mundos ao mundo"

3/5/94
(antigo dia da Vera Cruz ou "Bela cruz" em linguagem então popular)

Levi Condinho, in Colheita serôdia — inéditos e dispersos, Edições Húmus, Novembro de 2020, pp. 16-17.

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