terça-feira, 15 de novembro de 2022

QUINZE

 
   15. Também havia estratos de indigência, mediam-se não apenas pelos sinais exteriores de miséria. Um homem é tanto mais miserável quanto maior for a sua incapacidade de integração, algo que se aprende desde cedo a observar o modo como são tratados os alienados, os loucos, os mitos urbanos, personalidades à margem da engrenagem social que assegura alguma organização na vida colectiva. Pé Descalço, por exemplo, primava pela obscuridade, todo ele se assemelhava a uma sombra ambulante. Ninguém lhe conhecia o tom da voz, arrastava-se cabisbaixo com os pés ao léu, barrete enfiado na cabeça, andrajoso e encardido como um animal vadio. Chegámos a persegui-lo, eu e a minha irmã, até uma cabana em ruínas onde sobrevivia sem portas nem janelas. Vem de longe, o fascínio pela solidão dos vagabundos. Com o Quim Mimi era diferente, as mães referiam-se-lhe como a uma ameaça. Ou comes a sopa ou chamo o Mimi e ele leva-te dentro do saco, diziam. Daí o temor sentido à sua presença, o recolhimento aconselhado pela aproximação. Ao contrário do Pé Descalço, tinha voz, uma voz provocadora e um riso sardónico, acompanhada de gesticulações obscenas e da brejeira tendência para o exibicionismo. Sem sucesso tentaram institucionalizá-lo, preferia o interior dos contentores do lixo às quatro paredes dos lares. Quem podia censurá-lo? No bairro novo havia também o Chico, com as calças puxadas por cima do umbigo, boina à banda sobre sorriso ingénuo. E o Mateus, que tocava guitarra sem cordas e repetia dez vezes o mesmo cumprimento ao ver-nos chegar a casa. E Maria Amélia, o rapaz de trejeitos efeminados, saracoteando-se com os pés para fora à maneira de um Charlot com saias. Qualquer um destes estava um degrau acima dos outros, talvez pela condescendência que as suas limitações intelectuais inspiravam e a insubmissão dos outros, ao contrário, repulsava.

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