terça-feira, 17 de janeiro de 2023

CHUPAR PAU

 

Vamos lá a ver, a actriz Keyla Brasil tem toda a razão em reivindicar o direito a uma vida digna. É matéria de direitos humanos. A causa trans, se bem a entendo, tal como muitas outras causas congéneres, parte desse princípio humanista do direito que todos os seres humanos devem ter à felicidade, independentemente da sua etnia, identidade de género, orientação sexual, etc. Também julgo porreiro, e até fico feliz, que tenha escolhido um teatro para se manifestar, retirando daí partido de algo que só beneficia o próprio teatro: é lugar de democracia e, tão surpreendentemente quão felizmente, garantiu-lhe visibilidade. Esta última parte, bem sei, é polémica, pois a visibilidade vem mais da partilha massiva do vídeo dos acontecimentos do que do acontecimento em si. Seja como for, está-se bem. O que me parece completamente errado é o argumento usado e, pior ainda, a cedência da companhia ao argumento usado. Partir do princípio de que uma personagem trans deve ser representada por uma actriz trans é um erro, tal como o é a ideia peregrina de que um texto escrito por um negro só poderá ser devidamente traduzido por um negro. Caímos numa tripla armadilha: a do “deve ser”, a dessa distinção sobejamente debatida entre representação e representatividade e, por fim, a de que para certos trabalhos há identidades de género mais capazes do que outras (não era suposto combatermos esta discriminação?). Este Natal ofereceram-me um livro com citações de Mao Tsé-Tung. Lá está o capítulo sobre o que a arte "deve ser" e o que a arte não "deve ser". A mania do "deve ser" em matéria de liberdade artística sempre me fez muita confusão, assim como todas as lógicas impositivas que vão no sentido de cercear essa mesma liberdade artística. Outra questão que não julgo devidamente discutida é a de uma putativa “desconstrução de um lugar de privilégio”. Lugares de privilégio em teatro? Estão a falar de quem e do quê? Das e dos modelos que nunca estudaram representação em lado nenhum e são contratadas e contratados para representar? Num território tão precário como o da cultura, sobrevivência não pode ser confundida com privilégio. A minha avozinha também dizia que eu era um privilegiado quando me via agarrado aos livros, ela que nem a quarta classe tinha. E eu fartei-me de ouvir gente a mandar este e aquele “cavar batatas” para saber o que a vida custa. A temática dos lugares de privilégio é tão resvaladiça que, sem querermos, acabamos muitas vezes a fazer figura de “gajos de Alfama” quando pretendíamos dar uma arzinho de sofisticação. Portanto, força Keyla aí na luta. Ela é justa e deve ser apoiada. O argumento é que, caramba, só vai mesmo seduzir quem já está seduzido. E agora vou ali chupar pau, venho já.

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