sábado, 14 de janeiro de 2023

TECTO, PARA ANDAR AO RELENTO

 


   Não é possível escapar à redundância quando nos pomos a escrever sobre um livro que diz tudo sobre si mesmo. Sejamos, então, redundantes. O livro merece-o. “Tecto, Para Andar ao Relento” (Barco Bêbado, Dezembro de 2022), de António Cabrita (1959) recolhe textos ensaísticos de proveniência diversa organizados em três partes. A primeira, que ofereceu título ao volume, recupera e reenquadra alguns parágrafos redigidos para um livro de Maria João Cantinho. O tema é a poesia, sua natureza, função, deveres e direitos, custos e benefícios, pensada a partir de uma impressionante profusão de citações que leva a desconfiar de tamanha constelação. Sobre isto de citar, esclarecerá o autor que «A questão não está na bazófia de citar-se mais ou menos, mas, precisamente, no conseguir que aquilo que se cita abra uma janela (um nexo) para o desvendamento de um ponto de vista (uma “linguagem”), que até pode ser não-verbal» (p. 105). O texto em questão, no qual, e como noutros, se percebe uma benigna auto-ironia, evoca Julio Ramón Ribeyro, mas também Taisen Deshimaru e Daisetsui Teitaro Suzuki, Tomas Trnaströmer e Derrida, para rematar com menção a João Botelho. Ocupa pouco mais de uma página.
   Haverá defeito na leitura e no desejo de distribuir os seus frutos? Os aforismos coligidos em “Mar Vertical”, a segunda parte do livro, provenientes na sua maioria do weblog Raposas a Sul, resolvem o problema levando-nos a crer num pensamento construído no confronto com o outro. O exercício não é tanto o de dialogar com este ou aquele autor, até porque eles não responderão, mas antes o de deixar que o pensamento seja impelido pela leitura. Estas páginas, não todas, mas quase todas, jamais existiriam sem esse motor de arranque que a nós, leitores, se oferece sob a forma de uma generosa partilha de referências. Cada qual fará com elas o que bem entender.
   Reforço o termo generosidade para dar conta de uma dimensão neste livro que muito me agrada. Esta batalha travada no campo de honra da literatura sugere uma espécie de didáctica muito mais informal do que possa parecer à primeira vista. O que Cabrita geralmente faz, num estilo impecável e com um sentido de humor que não me canso de gabar, é tratar-nos, a nós que o lemos, como aquele amigo a quem dizemos: eh pá, olha o que eu li, pus-me a pensar nisto e dei conta de que. Se o texto introdutório pode ser sufocante, as prosas breves que lhe seguem são de uma inquestionável abnegação. E isso é admirável, tendo até em conta o facto de haverem sido, na sua maioria, previamente publicadas num weblog, plataformas de que em tempos se dizia terem a partilha como a mais nobre remuneração.
   Acrescentem-se às cogitações, concordantes e discordantes, lições de crítica, exegese, hermenêutica do texto poético, a poesia interpretada à lupa, a inteligência do leitor que não afrouxa sobre a superfície do texto, antes penetrando-o até dele retirar algo que olhos comuns como os nossos jamais captariam, a que devemos acrescentar traduções originais, interrogações, fragmentos: «É preciso continuar a procurar o animal inexistente que o amor fez surgir no elíptico coração do homem» (p. 155).
   Um texto, a páginas 113, ocupa-se das possibilidades da poesia ao longo de 9 páginas. É uma aula que só por si mereceria discussão profunda. A memória também se intromete, quase sempre em tom picaresco como o da história que nos apresenta um Cabrita disléxico verbal e relacional. Mas, mais importante, quem leia este livro não deixará de reparar na coerência e no rigor com que o autor abraça os desafios a que se propõe. O amor à língua e a paixão pelas palavras talvez seja o centro a partir do qual tudo o mais se desenrola como lava a ser expelida por um vulcão. Assim se compreende o entusiasmo com que, a páginas 129, se dá conta da descoberta de uma palavra nova (lúzios) e da intenção de fundar um Clube dos Amigos dos Lúzios, já em espírito de missão trinta páginas depois: «Salvem-me do desconsolo os lúzios peregrinos de uma trintona»… Dito e feito.
   “Tecto, Para Andar ao Relento” encerra com um texto de apresentação da poesia reunida de Paulo da Costa Domingos, acrescentado da leitura de um livro posterior do mesmo autor e do que nele ecoa acerca da guerra em curso na Ucrânia.

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