21. O conservadorismo vinha do sal sob a terra, diziam com graça alguns
amigos da província. Outros juntavam ao sal substâncias com décadas de
decomposição após o encerramento das minas. Com minas e salinas nas raízes dos
pés, cheguei a Lisboa a pensar que ia encontrar um mundo diferente do mundo até
então conhecido e experimentado. O nepotismo era o mesmo, a ganância também, mudava
a escala. O problema era nacional e exigia, desde logo, adaptações ao nível da
língua. Explico-me: uma pessoa integra-se pelo modo de falar. Em Lisboa
dizia-se 55, não se dizia autocarro, muito menos carreira. Se eu insistia em apanhar
a carreira, não era por teimosia nem conservadorismo, era já a gozar por dentro
com o carreirismo disseminado à minha volta. Há um mal nisto de gozar por
dentro, ficamos cerrados dentro de nós próprios, isolados numa intimidade que a
dado momento pode tronar-se tortuosa. Outra coisa de que me apercebi foi das
variações em certos meandros praticadas sobre o argumentum ab auctoritate. Não
interessava tanto o que se dizia como importava quem o dizia. As ideias impunham-se
pela popularidade de quem as proferia, não pelo valor intrínseco das ideias,
sendo que no caso português a popularidade está quase invariavelmente associada
à troca de valores, é mercantil, isto é, depende do uso e do proveito, desse
comércio de permutas que ajuda uns a ascender e mantém outros de bico calado, devidamente
arrumados no lugar que é o seu por herança e hereditariedade. Portanto, dava
jeito o partido, a associação, a irmandade, o grupo, a organização. Eu, todo
feito de caos, teimei em apanhar carreiras em vez de cinquenta e cincos,
atirando-me cada vez mais para dentro de mim, tão dentro que acabei por
rebentar. Perdi as coordenadas no espaço, fiquei sem saber onde me encontrava e
para onde me dirigir. Meteram-me na carreira de regresso a casa, onde entrei
agoniado e me enclausurei a olhar para tectos onde manchas amarelas saltavam
como pulgas fantasmagóricas. Deixei de dizer coisa com coisa, qualquer ruído me
feria, principalmente o som dos talheres sobre a mesa. Não dormia, delirava.
Nos restaurantes, o pânico tomava conta de mim impelindo-me para o interior de
casas de banho onde lavava o rosto com água fresca para disfarçar ardores
interiores que me desconcertavam e desconcentravam. Estaria a enlouquecer? Era
possível. Só o silêncio e a escuridão me acalmavam. Esgotamento, disse o médico
de clínica geral. Depressão nervosa, disse o neurologista. Fadiga, saturação, cansaço
de que nunca mais me libertei por completo. Foi no ano em que fiz vinte: as
sombras apressavam-se / por dentro da calçada // o tempo febril das criaturas /
atropelava as sombras // plasmava os movimentos / oblíquos das mãos // fui
capturado pelo frugal / perfil da indiferença // agitei o coração / e fiz um
cocktail de ódio // bebi-o num cálice / improvisado com os punhos.
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