quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

VINTE

 
   20. Foi um ano difícil, deixei lógica para trás. Estava mais interessado nas conjunções adversativas. Comprava ramos de flores aos indianos e andava pelo Bairro a oferecê-las a esmo. Saía muito sozinho, mas também acompanhado. Quando saía acompanhado ficava muito dentro de mim. Logo, não saía. Mas era como se saísse. A vida transformou-se num labirinto com exposições disseminadas pelos corredores, salas de cinema numa esquina, teatro na outra, concertos vários, o jazz a invadir as páginas de Aristóteles para contrariar o “Organon”. Uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo, asseguro-vos. Eu, por exemplo, sou e não sou. Estou como o crepúsculo naquela noite que ainda é dia, naquele dia que já é noite, luz intermédia, o tempo segundo Santo Agostinho e a fenomenologia de Husserl aos saltos na consciência interna. No sexo, para dar um exemplo, tanto naqueles tempos que tremiam as pernas pela manhã, somos e não somos. Há um cheiro do outro que nos penetra e intromete-se no sangue, percorre as veias até se intrometer no sistema nervoso central. Traições várias pelo caminho curaram-me do romantismo que leva amantes a jurarem vidas eternas, promessas vãs como uvas-passas em noite de Ano Novo. Na paixão acredito, sim, toda a minha fé então direccionada para a bebedeira que, segundo Cioran, nos aproxima da santidade. Convém citar esta gente, não vá quem nos leia julgar-nos incredíveis. Olhando de relance sobre esses anos quase perdidos, uma única certeza: podia ter morrido um milhão de vezes. Nisto, a infância, com todas as suas imprevidências, foi menos de risco. E em tudo uma situação limite a transbordar como aquele vómito que sobe à boca quando já não nos temos de pé. Nos entretantos, lá pelo meio do labirinto, reencontrei um ex-professor que me ofereceu livros e gravou cassetes. Estou a ouvir uma delas: Michel Richard Delalande, “Miserere à Voix Seule”. Acreditam?

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