sábado, 9 de junho de 2018

[Olha os impressos, os envelopes.]


Olha os impressos, os envelopes. Não te esqueças do registo para as cartas e da cabeça que te deixei na caixa de correio. Ordena as capas. Cuidado com os separadores. São cinco e sem cinco o pescoço à guilhotina. O sono sepultado neste cortejo percorrido a nojo. Vais para casa e não dormes, encostado às costelas doentes do quarto. Sentes que alguém está para morrer brevemente e que a arte do mundo foi esquecida num tropeção de labaredas triangulares. Acotovelas-te nesta velhice de nenhuma idade para contar. Percorres as livrarias vazias da cidade e caminhas apressadamente para um lugar escuro onde possas finalmente chorar. Acomete-te, por fim, a visão de um farol no núcleo de uma paisagem africana. Leopardos à cabeceira de um astro apontado ao sangue roído da terra. Ainda assim, não consegues escrever. Meses e meses sem escrever, até que enlouqueces de olhar pregado numa cervejaria decrépita nos arrabaldes da cidade. Com o polegar anuncias a vinda do Outono e colhes, de desmaio em desmaio, o mosto que por esses dias te enfeita o rosto trémulo como uma peste. Revelas a uma criança que não cortas as unhas dos pés. Não por indolência, mas por saberes que essa é talvez a única forma possível de iludir o itinerário da morte.



Pedro Magalhães (n. 1981), in Cárcere. Natural de Guimarães, publicou Imaginários Corvos de Sangue (Edita-me, 2011) e Cárcere (Debout Sur l’Oeyf, 2017). Está representado na antologia Casa (do lado esquerdo, 2016). Autor de poemas em prosa por vezes narrativos, com suas personagens vagas (Valéria, Senhor Clemente, etc…), noutras ocasiões cifrados por uma linguagem altamente metafórica, carregada de imagens violentas e de ricas associações sinestésicas (cor de uivo). A intimidade surge nestes poemas sem que o discurso se incline para o intimismo, sendo perceptível as marcas da saudade, da ausência, da incomunicabilidade: «Esbichar as ervas daninhas das palavras enquanto vou trauteando derrotas diárias de uma vigilância empobrecida». Luís Miguel Nava será porventura na literatura portuguesa o autor que mais se aproxima de uma referência para estes textos, os quais não recusam no seu vigor caudaloso ecos de um mundo real (a escória deste país) e ressonâncias imaginárias com dragões, magos e monges à mistura.


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