sexta-feira, 27 de julho de 2012

O ANÃO E A NINFETA

Quando soube da atribuição do Prémio Camões a Dalton Trevisan (n. 1925), senti, em doses equivalentes e ao mesmo tempo, uma enorme alegria e uma profunda tristeza. Alegria pelo autor que Trevisan é, tristeza por me parecer praticamente impossível um contista português vir a merecer tamanho reconhecimento. É verdade que, nos últimos anos, o conto na sua vertente mais curta tem merecido atenções editoriais outrora irreconhecíveis, muito por culpa do acolhimento dedicado à obra imensa de Gonçalo M. Tavares. Em tempos, Pedro Paixão também ameaçou, com alguns dos seus livros, inverter a situação, mas acabou, no final, a contribuir para uma ainda maior desconfiança dos leitores face aos contos reduzidos à sua estrutura óssea. Já Alface nunca teve do público nem da crítica a atenção que merecia. Sob o pretexto da inexistência de leitores interessados, os editores recusam investir em autores que elevem a prosa breve a um adequado estatuto de exigência. O panorama só não é desolador porque, ao ritmo de uma infecção urinária, a coisa ainda vai pingando.

Ao ler agora O Anão e a Ninfeta (Record, 2011), colectânea mais recente do escritor brasileiro, que me chegou em envelope generoso enviado da Noruega, acompanhado de mais uma dúzia de títulos que a seu tempo serão aqui partilhados, volto a experimentar a bipolaridade inicialmente confessada. Dalton Trevisan tem uma prosa gingona com rara capacidade de expor ao pormenor, e através de pormenores, as dissonâncias da vida quotidiana. As suas personagens resultam de uma observação minuciosa do ambiente urbano, ora mais hostil, ora algo patusco, embora o autor revele, nas entrelinhas, um certo «pavor ao caricato». Anões com apetites sexuais insaciáveis, velhos que coleccionam livros por devoção amorosa às caixeiras das livrarias, putas, heróis improváveis, falsas beatificações, amores impossíveis e paixões invulgares, o rasgo inesperado das crianças, os martírios da vida doméstica, tudo se mistura em contos breves, por vezes de linhas, outras vezes de meia dúzia de páginas, ou ainda partidos em verso, quais pequenos dramas, poemas minimais disfarçados de micronarrativas:

CAQUIS

A linda noivinha
de avental florido
serve a mesa
hoje inventei uma salada de caqui
pró meu amor
admirando as graças da jovem
ele já se promete
o grande guloso
tão outras saladas
bem outros caquis


No entanto, neste livro em particular ressalta a história do coleccionador de livros – retomada nos contos O Colecionador, A Caixeira e Rute, Meu Bem -, um velho apaixonado pela balconista de uma livraria, perdido entre o desejo incontrolável e o medo do ridículo, num labirinto onde a dignidade adquire a textura de uma oportunidade perdida, desenganado pela desconfiança e remoído pelos cotovelos e, em certa medida, no corno da ilusão: «Ai, dores malditas de amor. Que assunto mais usado e repetido. Eterno cantiquinho monocórdico. / Nem sequer merece um conto» (p. 96). A velhice uiva noutras narrativas, uma velhice que aproxima os homens adultos das crianças devido a uma certa ingenuidade sentimental que o autor expõe complacentemente. Há que ser compreensivo, mesmo quando a paixão murcha no leito da cama doméstica e outros demónios rugem dentro de um homem acossado pelo desejo. Largo aqui mais um, a ver se estimulo apetites transatlânticos:



A VIAGEM

— Como foi de segunda lua de mel?
— Quer mesmo saber?
A viagem desde o início arruinada pela companhia sabe de quem.
Rabiscava as iniciais em toda sagrada coluna de templo grego.
Murchou a delícia do mais carnoso figo siciliano.
Converteu o vinho francês da melhor safra em vinagrão azedo.
E o pior é que, sempre juntos, nem podia rezar que o avião dele caísse
.


Dalton Trevisan, O Anão e a Ninfeta, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011.

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