O manuel a. domingos tem vindo a elaborar uma lista sobre critérios que são os dele. Não me interessa esmiuçá-los. Interessa-me chamar a atenção para algo afirmado sobre À Espera no Centeio, de Jerome David Salinger (n. 1919 – m. 2010). O manuel refere-se ao livro em causa como uma obra despretensiosa e simples, o que a colocará, se bem entendo, nos antípodas das obras pretensiosas e complexas. Ora, custa-me engolir este tipo de classificações e julgo que o grande mérito de um livro como À Espera no Centeio reside na sua complexidade. A pretensão ou despretensão da obra é-me inacessível, embora tenda a considerar todos os livros pretensiosos à sua maneira, mais que não seja por pretenderem exprimir alguma coisa (mesmo quando alguma coisa é coisa nenhuma). De resto, a complexidade do livro não é desmentida pelo remate do texto que o manuel a. domingos lhe dedica: «Todos nós gostaríamos de ter alguém à nossa espera, que nos impedisse de cair no abismo. Só que o abismo está lá. Encontrar alguém que nos segure, é outra conversa.» A última frase terá uma vírgula a mais, problema que não reconhecemos na prosa de Salinger. Autor de um único romance, é daqueles de quem ouvimos por vezes dizer ter sido recluso da sua genialidade. Publicou algumas histórias na New Yorker logo após serviços prestados durante a Segunda Grande Guerra; em 1951, ganhou fama com o seu único romance The Catcher in The Rye (título que a edição portuguesa verteu para À Espera no Centeio); depois só lhe conhecemos alguns volumes de contos reunidos, termo de uma exposição pública que J. D. Salinger resolveu fechando-se num absoluto e eterno silêncio. Podemos olhar para o seu romance como a história de um adolescente a caminho da idade adulta, ou seja, no trilho da perda de inocência. Vários indícios apontam nesse sentido. Mas o que me leva a desconfiar de Holden Caulfield, o jovem rebelde de dezassete anos que não pretende senão contar-nos os seus últimos dias, é precisamente o facto de ele tantas vezes sentir necessidade de reforçar a verdade das suas asseverações com expressões tipicamente coloquiais tais como «fora de gozo» ou «a sério». Salinger oferece-nos, deste modo, uma voz narrativa aparentemente simples (adolescente) atravessando um estádio de vida extremamente complexo (adolescência). Oferece-nos essa voz num estado de contradições que sugere, sem indicar, uma certa perspectiva sobre a própria condição humana. Nada disto, para já, parece muito complexo. O que não é tão simples é a capacidade do autor nos fazer acreditar na personagem como se estivéssemos sentados ao balcão de um bar a ouvi-lo contar a sua história. Torna-se, pois, bastante irónico que seja a própria personagem central do livro a dizer o que pensamos: «O que realmente me enche as medidas é um livro que, depois de acabarmos de o ler, nos faça desejar que o autor que o escreveu fosse um grande amigo nosso e pudéssemos telefonar-lhe sempre que nos desse para aí» (p. 27). Imaginamos o quanto se terá arrependido J. D. Salinger desta simples frase que não é uma frase simples. A partir deste momento, Holden Caulfield como que captura o leitor transferindo-o para dentro da história. Nós passamos a ser parte integrante de uma efémera mas intensa vagabundagem íntima, porque a vida não se resume a chegar a um cruzamento e optar por um dos seus caminhos. Revela-se tremendamente complexa quando nela encontramos diversas sensações entrelaçadas, numa espécie de bordado construído através da experiência presente mas em constantes envios para memórias remotas (tanto quanto podem ser remotas as memórias de um adolescente). Os anseios de Holden (reparem bem no nome, qualquer coisa entre o verbo hold - agarrar - e o substantivo holder - aquele que agarra) são os de quem não pretende esperar mais pela suposta independência da idade adulta, olhando, porém, para os adultos com um desprezo evidente. Apesar de se referir à sua infância em tom depreciativo, é na inocência de uma criança que ele encontra redenção. O desejo expresso a partir do poema que oferece título à obra parece simbolizar isso mesmo: a consciência de uma inocência perdida, lá nesse lugar chamado infância, a par da consciência de uma queda vertiginosa que é a vida na idade adulta: «A maior parte das pessoas quase que não têm sorriso nenhum, ou então é um sorriso merdoso» (p. 66). O ideal para Holden, se assim podemos dizer, seria agarrar a infância nos alçapões da experiência que nos vão tornando adultos. Como interpretar o seu ódio ao cinema? E as suas hesitações sexuais? Como não ver nos milhões de cabelos brancos que tem num dos lados da cabeça a marca de qualquer coisa que não sabemos bem o quê? Como entender os seus acessos de compaixão para com as fragilidades do ser? É por isso que, ao lermos o livro, pensamos que gostávamos de ser a vida inteira o que o jovem Holden foi durante três dias, sabendo que talvez ele ainda não possa perceber que foi em três simples dias o que nós, adultos, gostaríamos de ser a vida inteira. Autênticos. Acho que é isso.
:D
ResponderEliminarde facto poderá existir uma vírgula a mais; mas também poderá estar uma a menos. em Salinger isso não acontece. verdade.
entendo os teus argumentos. considero-o, mesmo assim, um romance simples e despretensioso. faço-o em comparação a outros romances que li. exemplo: Correcção, de Thomas Bernhard.
e mais não sei dizer. apenas sei que o li, gostei. o abismo existe. alguém que nos pode segurar existe. precisamos é de a encontrar. e pronto.
bom, agora fiquei cheia de vontade de ler o livro. :)
ResponderEliminarÉ lê-lo. Está disponível uma edição bastante recente, da Quetzal.
ResponderEliminarEstou a ler essa versão, já segundo o novo AO.
ResponderEliminarÉ um livro magnífico! Não tanto pelo que conta mas mais pelo que deixa ao leitor para refletir.
Aconselho!