Em 1979, a editora Record publicou uma antologia escolar de Dalton Trevisan intitulada 20 Contos Menores. O título diz algo do autor, mas muito mais dizem as notas reproduzidas nas badanas do volume que contempla, à razão de dois contos por cada, os livros Novelas Nada Exemplares (1959), Cemitério de elefantes (1964), Morte na Praça (1964), Desastres do Amor (1968), Mistérios de Curitiba (1968), A Guerra Conjugal (1969), O Rei da Terra (1972), O Pássaro de Cinco Asas (1974), A Faca no Coração (1975) e Abismo de Rosas (1976). Nessas notas ficamos a saber que Trevisan (n. 1925) é advogado e pai de duas filhas, prefere que os contos falem de si a falar sobre os contos, considera-se, enquanto contista, um vampiro de almas, um espião dos corações solitários, definiu para si o caminho da brevidade, ao contrário dos autores que trazem na mira o romance. No entanto, lemos os contos do Prémio Camões 2012 e ficamos com a sensação de que nele a brevidade é apenas o fragmento de uma grande composição, como num puzzle a peça isolada é tão-somente um brevíssimo retrato da paisagem geral. Tendo por cenário quase exclusivo a cidade de Curitiba, as personagens de Dalton Trevisan cruzam-se umas com as outras como transeuntes nas ruas de uma cidade. O filho tresmalhado, a mulher maltratada, o homem solitário, os velhos, com suas cenas quotidianas, domésticas, sociais. Desavenças conjugais, cenas de ciúme, paixões amordaçadas, traições, a doença e a confissão, crendices, gente que se mata ou morre de causas naturalmente provocadas. Seja como for, isto não é mero realismo. Isto é uma espécie de crónica dos dias comuns filtrada pelo olhar inventivo do observador, um olhar que não enjeita nenhum tipo de linguagem ou dizer e nos faz desejar broinha de fubá mimoso sem que façamos a mínima ideia do que se trata. Em Busca de Curitiba Perdida (2.ª edição, 1997), a antologia que homenageia a cidade-palco, é especialmente reveladora da dimensão “cronística” desta obra. Mas também nos mostra um autor, nomeadamente nos textos colhidos em Dinorá (1994), com uma admirável capacidade irónica. Em Quem Tem Medo de Vampiro? descompõem-se enquanto contista, mas nas cartinhas ao velho poeta e ao velho prosador dirige-se, sem rodeios, à pesporrência dos instalados. Ao contrário da outra, a quem não bastava ser, tinha de parecer, Trevisan é... porque não faz por parecer. Autor discretíssimo, mas prolixo, investe nas personagens como um escultor que nunca dá por esculpida a pedra que tem em mãos. Não parece reflexivo, mas reflecte; não parece filosófico, mas filosofa; não parece descritivo, mas descreve; não parece imaginativo, mas a imaginação é nele uma fonte inesgotável. Daí que a paisagem da “cidade diabólica”, com suas cenas de violência doméstica e social, partidas em verso ou coladas em prosa, nos apareça mais em tom elegíaco, mesmo quando aparenta uma certa ligeireza caricatural, do que sob a forma de um louvor desgraçadamente cegueta. A pequena antologia 111 ais (coleção L&PM Pocket, 2000), que colige sublinhados transformados em micronarrativas respigadas nos livros Ah, é? (1994), 234 (1997) e Pico na veia (2002), com ilustrações de Ivan Pinheiro Machado, torna-se pela sua índole aforística uma bela síntese dos amores e dos desamores do autor. Entre os amores, destacamos a corruíra, ave cujo canto povoa as historietas de Trevisan como um abrigo inconfessado. Por vezes cómica, outras vezes melancólica, frequentemente nostálgica, esta prosa tem o mérito supremo de respeitar a vida na sua essência temperamental. O mais estranho é que Dalton Trevisan tem a capacidade de nos desenfastiar da realidade mostrando-nos a realidade. Com outra desenvoltura narrativa, os contos escolhidos pelo autor para 35 Noites de Paixão (BestBolso2009), tidos pelo que de melhor produziu na vida literária, são uma excelente porta de entrada para o universo trevisaniano. Podiam as editoras portuguesas começar por aqui. Compreendemos que a rua é a casa do contista, os episódios desenrolam-se a partir da relação entre os elementos que a compõem revelando, por vezes em meros pormenores na acção dos personagens, que noutras circunstâncias dissipar-se-iam e passariam despercebidos, a matéria com que se cozinha a humanidade. Fica de exemplo o ressoar da voz dos desafortunados num conto que podia ser, quem sabe, a mera reprodução de um discurso gravado a meio de uma rua qualquer (qualquer, não; numa rua de Curitiba, faz favor):
O PERDEDOR
O senhor conhece um tipo azarado? Esse sou eu. Em Janeiro bati o carro, não tinha seguro. Depois roubam o tocafitas, nem era meu. Vendi os bancos para um colega e recebo só a metade.
Em Março, despedido da firma onde trabalhei 7 anos. Empresto o último dinheirinho a outro amigo, que não me paga. Vou a um bailão, não danço e acabo apanhado.
Comprei um carro velho, atraso as prestações, o dono toma de volta. Monto uma banquinha, o negócio não dá certo. Sabe o que é um cobrador de vermelho sentado à sua porta?
Passo o ponto com prejuízo e vou à luta por um emprego. Preencho mil fichas, a resposta uma só: ganhava bem, não posso ter o salário reduzido.
Domingo no parque, dois pivetões me assaltam. Fico sem ténis, o relógio, o boné do meu time, eterno perdedor.
Era pouco ao Senhor? Estou com os dentes ruins, a vista fraca, acho que é diabete. Mais que converse com a mãe, visite a irmã, divirta os sobrinhos, faça um biscate, me sinto cansado de viver.
Noivei coma Maria que ontem me contou ser a outra de um fulano casado.
Ó Deus, de que lado está o Senhor? Sozinho em casa, fiz a barba, tomei banho, vesti a jaqueta cinza, a gravata azul de bolinha.
Lá vou eu de viagem: elegante, em flor, na ponta de uma corda. Perdão, mãe. Adeus, pessoal. Desta vez, Senhor, tem dó de mim.
O PERDEDOR
O senhor conhece um tipo azarado? Esse sou eu. Em Janeiro bati o carro, não tinha seguro. Depois roubam o tocafitas, nem era meu. Vendi os bancos para um colega e recebo só a metade.
Em Março, despedido da firma onde trabalhei 7 anos. Empresto o último dinheirinho a outro amigo, que não me paga. Vou a um bailão, não danço e acabo apanhado.
Comprei um carro velho, atraso as prestações, o dono toma de volta. Monto uma banquinha, o negócio não dá certo. Sabe o que é um cobrador de vermelho sentado à sua porta?
Passo o ponto com prejuízo e vou à luta por um emprego. Preencho mil fichas, a resposta uma só: ganhava bem, não posso ter o salário reduzido.
Domingo no parque, dois pivetões me assaltam. Fico sem ténis, o relógio, o boné do meu time, eterno perdedor.
Era pouco ao Senhor? Estou com os dentes ruins, a vista fraca, acho que é diabete. Mais que converse com a mãe, visite a irmã, divirta os sobrinhos, faça um biscate, me sinto cansado de viver.
Noivei coma Maria que ontem me contou ser a outra de um fulano casado.
Ó Deus, de que lado está o Senhor? Sozinho em casa, fiz a barba, tomei banho, vesti a jaqueta cinza, a gravata azul de bolinha.
Lá vou eu de viagem: elegante, em flor, na ponta de uma corda. Perdão, mãe. Adeus, pessoal. Desta vez, Senhor, tem dó de mim.
Tenho-te a informar que amanhã, Dalton Trevisan terá o privilégio de receber os teus livros, acompanhados de uns belos pastéis de nata.
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