Há muito que a dúvida sobre a possibilidade da poesia ocupa
os poetas. Seria um erro julgar que ela surgiu com Adorno depois da II Grande
Guerra, da mesma forma que é um erro excluí-la das preocupações centrais que
ainda hoje se colocam a muitos autores. A segregação dos poetas na república ideal
de Platão também não explica o problema. O filósofo estava parcialmente certo
quando responsabilizava os poetas pela invenção de mitos, os quais condenava
por serem prejudiciais a uma educação para a verdade. Condenada a poesia,
deixou-se-lhe, no entanto, o benefício da dúvida quando se ocupasse de imitar o
homem de bem, o homem ideal, o homem bom segundo a terminologia platónica. Não é
por acaso que Hart Crane (n. 1899 – m. 1932) cita Platão no último poema do seu
mais importante livro, reivindicando para a poesia uma forma de conhecimento
que Platão atribuía à música: ritmo. Quis a ironia do destino que The Bridge
fosse publicado no ano em que Herberto Helder nasceu, esse ano de 1930 que
acolheu do outro lado do Atlântico a voz de um poeta também ele obscuro, também
ele órfico, também ele fazedor de mitos, também ele ocupado em viajar no tempo
através da linguagem. O corpo de Crane desapareceu prematuramente, diz-se que
no alto-mar algures entre o México e Nova Iorque. Era o dia 27 de Abril de
1932, dois anos passados sobre a publicação de um livro visionário. Na introdução
à edição que possuo, Waldo Frank informa que o barco estaria 300 milhas a norte
de Havana: «He took off his coat, quietly, and leaped». Desapareceu para sempre
no imo de uma força natural que os seus poemas cantam convenientemente, usando-a
como símbolo de uma unidade onde as fronteiras se apagam. Mas o mar é também
esse espaço de ninguém que se intromete entre o velho e o novo mundo, imagem transfiguradora
de uma distância ao mesmo tempo geográfica e histórica. The Bridge tem uma
estrutura rígida, comparável talvez à Mensagem (1934) do nosso Fernando Pessoa
(publicada, aliás, quase na mesma altura). Nele encontramos evocações das
figuras históricas centrais da América, do navegador Colombo a Pocahontas, de escritores fundadores
da literatura norte-americana, tais como Melville, Whitman ou Poe, aos
pioneiros que desbravaram territórios e erigiram uma nova civilização. Uma
civilização que, de resto, surge do aniquilamento do passado. No entanto, estas
evocações aparecem misturadas num panorama urbano que torna o presente época de
saturação e de declínio. A ponte é a estrutura urbana sólida que liga as duas
margens, é o ferro (modernidade) sob o qual o rio (tempo) corre imparável na
direcção do mar (absoluto). O poeta é quem atravessa a ponte, mas também é quem
desce ao inferno quando apanha o metro e se confronta com a multidão, “uma
serenata tranquila de sapatos e chapéus-de-chuva, cada olho a prestar atenção
ao seu sapato”. Ao contrário de Whitman, Hart Crane não se deixa contaminar pela
agitação. Não se entusiasma. Desconfia. Des-confia. Pressente-se nele uma agonia
que manifesta ausência de fé, motivada porventura por uma perspectiva de que o
tempo assume a forma de um distanciamento do “paraíso perdido” mitológico ou
que do futuro podemos esperar apenas o curso da decadência: «This was the
Promised Land, and still it is / To the persuasive suburban land agent / In
bootleg roadhouses where the gin fizz / Bubbles in time to Hollywood’s new
love-nest pageant» (do poema Quaker Hill). É precisamente neste contexto que o
poeta se interroga sobre qual dos olhares lhe pode convir mais: o olhar alto do
falcão ou o olhar rastejante do verme? Eis a dúvida que atormenta todos os poetas
pelo menos desde que Deus mandou o homem dominar a natureza e todas as suas criaturas
selvagens. Ora, o poeta é uma criatura selvagem. Como pode ele
dominar-se a si próprio? Como pode ele domesticar-se e cumprir o desígnio divino?
O grande dilema, a grande contradição, a ambiguidade central do poeta é precisamente esta. Num mundo industrializado, num mundo escravo da tecnologia, no mundo das "servidões", a poesia
como que desespera de um novo arco-íris, o arco-íris que Crane coloca, ele próprio,
no centro da sua poesia, elo com um sagrado anterior às grandes construções
religiosas, aos grandes edifícios tentaculares, anterior à cristalização dos
mitos. Thomas A. Vogler diz que Crane viu no problema do poeta um reflexo do
problema central da sociedade em que vivemos, e diz muito bem. Esse problema,
que os místicos resolvem com experiências de êxtase e visões/iluminações momentâneas,
é ainda mais lancinante no poeta des-esperançado. É ainda Waldo Frank quem nos
lembra que Crane era um místico num mundo anti-místico, tendo vivido entre o êxtase
e a exaustão. Como vimos, resolveu cedo a sua ambivalência. Não sem antes deixar como herança o testemunho da sua deriva: “antífona murmurada na agitação
do azul-celeste”.
Acho que o olhar que mais convém ao poeta é o de fingidor, fingindo a dor, que ele, deverás, sente. Belo post.
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