Sob as estrelas, sob as bombas,
sob os turvos ódios e injustiças,
no frio corredor de lâminas eriçadas,
no meio do sangue, das lágrimas
caminhemos serenos.
De mãos dadas,
através da última das ignomínias,
sob o negro mar da iniquidade
caminhemos serenos.
Sob a fúria dos ventos desumanos,
sob a treva e os furacões de fogo
dos que nem com a morte podem vencer-nos
caminhemos serenos.
O que nos leva é indestrutível,
a luz que nos guia connosco vai.
E já que o cárcere é pequeno
para o sonho prisioneiro,
já que o cárcere não basta
para a ave inviolável,
que temer, ó minha querida?:
caminhemos serenos.
No pavor da floresta gelada,
através das torturas, através da morte,
em busca do país da aurora,
de mãos dadas, querida, de mãos dadas
caminhemos serenos.
Papiniano Carlos (n. 1918 - m. 2012), in Caminhemos Serenos (1957). «Integrando-se no movimento neo-realista, a sua poesia representou nele uma expressão mais francamente protestativa e retórica do que a de outros poetas como Mário Dionísio, Cochofel, Carlos de Oliveira ou Manuel da Fonseca. Exclamativa, anafórica, repetitivamente cheia de imagens e metáforas de escola ou, mais exactamente, do estilo de protesto cifrado, que ela for forçada a desenvolver, escapou no entanto à atmosfera de Afonso Duarte, presença e Miguel Torga (que algo pesou no grupo inicialmente coimbrão), e correspondeu aos aspectos de libertarismo apaixonado que o movimento sobretudo assumiu nas suas manifestações portuenses durante os anos 40» (Jorge de Sena, in Líricas Portuguesas).
Papiniano Carlos tem um nome terrível e uma poesia serena e não empolgante.
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