sábado, 30 de novembro de 2024

69 NOTAS SOBRE 69 APONTAMENTOS

 


1. Se Carl Theodor Dreyer não tivesse filmado “A Palavra” (1955), eu não teria conhecido a Maria João Lopes Fernandes. Agradeço publicamente a Carl Theodor Dreyer haver filmado “A Palavra”.

2. No dia 25 de Outubro de 2004 recebi correspondência da Maria João, o primeiro de muitos envelopes. Na altura a Maria João tratava-me por você.

3. Sobre o conteúdo do primeiro envelope, posso revelar que continha uma sebenta académica, labirintos em diferentes tipos de papel, um pequeno livro, outro “maiorzinho” numa edição de 35 exemplares numerados, fotografias de babilónias e de "babéis" em barro, paisagens recortadas por palavras… Não sei o que pensei quando me deparei com tal conteúdo, mas sei que fiquei satisfeito. Pareceu-me poético.

4. Isto foi antes de ter conhecido pessoalmente a Maria João, antes do encontro junto ao Palácio das Galveias, antes do jantar no Bairro Alto. À época, a Maria João era mais forte e eu era mais fraco.

5. Em Maio de 2005, criei um weblog chamado Insónia e convidei pessoas para se juntarem a mim. A Maria João chegou ao Insónia em Julho de 2005. Os posts da Maria João eram-me enviados pelos CTT.

6. Dentro dos envelopes vinham folhas A4 com indicações precisas sobre a composição dos posts. Alguns envelopes continham várias folhas que davam para um mês inteiro de publicações. 

7. Na Mesopotâmia, o “Épico de Gilgamesh” foi escrito em tábuas de argila. Foram necessários muitos anos de evolução para chegarmos aos posts escritos em papéis enviados por Correio Verde e Azul.

8. Os 69 apontamentos a que a Maria João chama “bloco verbo-visual”, agora coligidos em livro editado pela Maquete da Sara Rocio, têm essa origem. Há origens piores.

9. Este não é o único livro que conheceu no weblog Insónia um primeiro suporte de publicação. Antes deste, outros ali foram sendo semeados. Peço-vos desculpa por isso.

10. O primeiro destes 69 apontamentos foi publicado a 17 de Março de 2006. Não teve comentários.

11. O primeiro apontamento a ser comentado foi o terceiro. O Rui Costa comentou: «que bonito».

12. O mais comentado dos apontamentos foi o 55. Vítor Leal Barros achou graça a uma referência à drástica, a “banda drástica”. Espero que agora estes apontamentos tenham melhor sorte.

13. Em 2008, eu e a Maria João conversávamos no chat do Gmail. A 19 de Maio ela perguntou-me se eu ia ao lançamento do livro do Vítor. Eu respondi-lhe que ia jantar.

14. Também descobri uma troca de emails de 2006 em que a Maria João me dá conta de que já é quase metade, estava a diminuir. Eu respondi-lhe, e passo a citar: «Estou triste. Fui a Lisboa, vi dois filmes, vim-me embora.»

15. Isto que acabei de contar nada tem que ver com os apontamentos. Ou talvez tenha. Não sei.

16. Os apontamentos são comentários aforísticos em que o trabalho plástico da artista Maria João se conjuga com a existência quotidiana da pessoa Maria João.   

17. A pessoa Maria João e a artista Maria João são uma e a mesma entidade, sendo que só a primeira sobreviveria sem a segunda. Mas não seria a mesma cosia.

18. O primeiro apontamento é sobre uma cidade labiríntica. Os labirintos estão muito presentes no percurso da Maria João. A cabeça de cada um de nós é um labirinto do qual não se sai. Isso é uma chatice.

19. Outra chatice é ocuparmos espaços que são eles mesmos emaranhados de vozes, como as cidades que habitamos. 

20. As cidades da Maria João são compostas por letras que compõem palavras que compõem frases. As próprias imagens, creio, podem decompor-se em frases compostas de palavras compostas por letras.

21. O silêncio é o melhor que as palavras têm.

22. A música é o melhor que as palavras fazem.

23. «Sempre me senti estrangeira no mundo», escreve a Maria João no apontamento 4. Somos dois. Talvez possamos fundar um país, o país dos que se sentem estrangeiros do mundo.

24. Será que nos sentiríamos estrangeiros no país dos que se sentem estrangeiros no mundo?

25. Há imagens que me perseguem quando penso no trabalho da Maria João. A de uma cor a ser rasgada é talvez a mais forte de todas. Dediquei-lhe um conto, não vou repetir-me.

26. Prefiro ler-vos um apontamento, o sétimo: «Voltei para partir pedra nas palavras; para o verão amarelo terracota; calor de fornos e a argila nas mãos, feridas nas unhas ao lado das pedras distantes; terra que já foi pedra no tempo a tratar disso. A natureza em solos de xistos por camadas nas minhas mãos a escrever. Cidades invisíveis na terra templo das pedras escrevendo no tempo. E a escrita a percorrer o labirinto das ruas.»

27. Creio já ter referido que o “Épico de Gilgamesh” foi escrito em cuneiforme numas tábuas de argila há coisa de 4000 mil anos. Desde então, foi sempre a descer.

28. Os apontamentos, que são 69, dão-nos a ver um pouco do que se esconde sob o solo fértil da Maria João. A Maria João é solo fértil.

29. Lembrei-me agora de um texto do Alcides, que também escreveu no Insónia: Dizia assim:

Fui dar à passerelle mas só queria a sandes de courato da moda, que tem uma fina placa de borracha estufada chamada tofu. Engasguei-me logo e entrei no primeiro sítio que vi, que foi lá, e plo enjoo da tesúndia viram logo que eu é que era o máfio das pitoskas. Sentei-me na primeira cadeira e quase espetei um fémur na troncha porque havia lá uma dama que fugiu a correr e ao segundo passo levantou voo e ficou atarraxada no tecto, mas ninguém a viu porque devem-na ter confundido com um andaime. Começaram as raimundas a sair pró corredor, e eu a ronhar que difícil é a profissão onde não se ganha pra comer. Senti a sensibilidade e comecei a chorar, e aproximaram-se logo duas a dizer que eu era um lauriano sensível e eu disse-lhes que não era verdade, que no bairro como a carne crua e que me atravanco mais com o tofu, e confessaram-me que devia só haver paz e não haver maldade no mundo e carregaram a chorar e eu disse-lhes que não se chora com a boca cheia. A que estava pendurada no tecto começou a descer e era o meu ossudo que partia, mas não partiu, porque aterrou de fronha e devia ter adormecido porque vinha a ressonar com a tesaurinda a parecer um pão-de-ló todo feito de tofu. E eu choranguei um pouco mais porque me lembrei dos jogos de mikado que a maltoska jogava a comandar o capiléu pra não escangalhar a palitada. Foi a minha sensibilidade que as surpreendeu porque o mundo é muito mau e os adultos não são sensíveis e meigos como as crianças e os bobis, que é o nome dos canitos delas porque tá na moda retrós, que é como maria ou mesmo melaurinda, que era a que me arrastava já para o meio da passerelle, onde ficamos até ao fim do evento numa metáfora viva de sensibilidade, e poesia, e fôdasse.

30. A Maria João comentou este texto. Disse: «fôdasse bobi».

31. O Alcides é o Rui Costa.

32. Lembrei-me deste texto, suponho, porque era assim o ambiente em que nos cruzávamos online. Uns queriam textos a cores em negrito, outros enviavam-nos em croqui pelos CTT.

33. E no fim éramos mais ou menos felizes porque nos estimulávamos, isto é, despertávamos os ânimos e íamos à procura e partilhávamos e provocávamos e não tínhamos a mania que sabíamos mais do que os outros e entendíamos que entre as tábuas de argila de há 4000 anos e o mundo a acontecer é tudo relativo porque ainda há sítios onde uma pessoa pode sentar-se a olhar o céu e a escutar a água a cantar.

34. «A propósito, já alguma vez experimentaram partir pedra?» Pergunta a Maria João no apontamento 16.

35. Quem já experimentou partir pedra que não atire a primeira pedra, limite-se a pôr o dedo no ar.

36. Eu já parti pedras, eu já reparti pedras, eu já cortei pedras, eu já queimei pedras, eu já fumei pedras. Eu já fui um pedrado. Falta-me ser empedrado. Queira Deus que tal não suceda.

37. Eu nunca parti pedra em sentido literal. Só parti pedra em sentido metafórico.

38. Em certo sentido, ler um livro é como partir pedra. A cabeça transforma-se em maço e cinzel.

39. Agora a sério, eu não estou a brincar.

40. Estes apontamentos falam de música, de alfabetos, de betos alfa, de Évora, de gatos, das Belas Artes, e fazem contas: «Dois mil escudos correspondem a dez euros, e cinco euros a mil paus. O dinheiro antigamente era paus ou contos…»

41. Paro aqui, estou convencido de que há poesia numa frase como esta. Repito: «O dinheiro antigamente era paus ou contos».

42. E acrescento um ponto aos contos: o dinheiro também era em pedra. E era mesmo. Por vezes, a literalidade mis estúpida encontra-se inusitadamente com a poesia.

43. Gosto muito dos apontamentos 19 e 20. Depois leiam-nos.

44. Vou tentar dizer-vos uma coisa daquelas que se dizem nas apresentações de livros. Por exemplo: neste livro as palavras dialogam com as imagens, as imagens dialogam com o silêncio, o silêncio dialoga com o papel manchado de tinta, o papel manchado de tinta dialoga com o leitor, o leitor dialoga com o contemplador, o contemplador mantém-se calado, não dialoga com ninguém, é eremita, é o mais sábio de todos.

45. Acho que falhei no propósito de dizer-vos uma coisa daquelas que se dizem nas apresentações de livros.

46. Estou como a Maria João do apontamento 21: «aprendi a vomitar só quando estritamente necessário».

47. Reparo, no entanto, como nestes trabalhos está já o gérmen das obras que mais aprecio da Maria João: as naturezas mortas sociais.

48. As naturezas mortas sociais fundem fotografia e pintura, há nelas um jogo de sobreposição de cenas quotidianas com naturezas mortas eivadas de ironia. Por exemplo, um pequeno-almoço burguês com a polícia de choque em pano de fundo.

49. Gosto de pessoas que dizem coisas sérias a brincar. Parecem-me inteligentes.

50. Vou fazer uma sugestão à Maria João: pinta uma pilha de mendigos, de sem-abrigo, a dormirem debaixo das árvores de Natal gigantescas que fazem reluzir os olhos dos nossos concidadãos por esta época. Depois envia pelos CTT aos presidentes de Câmara que, de Norte a Sul, investem nos festejos de Natal como se estivessem a combater a fome no mundo.

51. Agora podia ler o apontamento 24, mas não vou fazê-lo. Leiam-no vocês, por favor.

52. Prefiro ler-vos o 26: «Uma reencarnação de Sócrates passou na minha rua esta madrugada: reconheci-o pelo andar peculiar e pela barba prateada; ele trazia a miserável condição humana dentro de um saco plástico, pendurado na mão esquerda.»

53. Não me parece por acaso que o saco esteja pendurado na mão esquerda.

54. Não vou maçar-vos com política.

55. No entanto, tudo isto é político. O homem é uma besta política que, por acaso, faz coisas bonitas. A maior parte das vezes mais valia ficar quieto.

56. «…tenho a língua presa, a minha língua prendeu-me. Um dia destes ainda a corto.» Escreve a Maria João no apontamento 28, ao lado de uma fotografia muito curiosa de calçada portuguesa e peças de um puzzle espalhado sobre a calçada.

57. A calçada portuguesa já me ia partindo uma perna. O calçado português faz-me bolhas nos pés.

58. Perdoem-me a indiscrição. Se calhar, estou a ser inconveniente.

59. Que se lixe. Há pessoas muito mais inconvenientes do que eu que não vos incomodam nada.

60. Agora vou ler-vos um apontamento só por causa das coisas. É sobre árvores de Natal. Leio-o directamente do bloco.

61. A Maria João também cita Camões. Ao que parece, fez 500 anos este ano. Camões. Mas ninguém sabe ao certo quando ele nasceu. Acontece aos melhores.

62. Estou quase a terminar. Não me apetecia nada falar de Camões. Agora já falei. Pronto.

63. Que mais posso eu dizer-vos? Que o nosso corpo é uma casa desarrumada? Que a nossa cabeça é um espaço vazio? Que não vale a pena sonhar com mundos perfeitos quando podemos cultivar amores-perfeitos no jardim ou em vasos?

64. Agora apetecia-me cantar. Fiquem descansados. Apetecia-me cantar quando estava a escrever isto, que já foi há uns dias. Agora já não apetece. Ou será que apetece? Como posso eu saber agora se quando estiver aí convosco a ler isto me vai apetecer cantar ou não? O futuro é uma incerteza.

65. E se isto fosse uma escultura? Olha lá, Maria João, pode um texto ser uma escultura? Partimos pedra a escrever?

66. Estes apontamentos também estão cheios de pessoas, às vezes dirigem-se directamente a segundas e terceiras pessoas. São como esculturas a olhar para nós, ali paradas a olhar para nós.

67. Tomem lá o apontamento 53: «Os amigos mortos visitam-me em sonhos, e nem sempre me lembro das suas mensagens; ao despertar destes sonhos, sinto que não estou sozinha e as minhas mãos param durante o dia; tenho dívidas a pagar com a vida, ainda não posso ir para lá, porque há muito a fazer.»

68. Pois há.

69. Gosto do número 69. Dizem ser erótico, mas a mim lembra-me equilíbrio. O yin yang. Sou uma pessoa muito espiritual.

Henrique Manuel Bento Fialho
Livraria Snob, Lisboa, 30 de Novembro de 2024.

1 comentário: