1. Se Carl Theodor
Dreyer não tivesse filmado “A Palavra” (1955), eu não teria conhecido a Maria
João Lopes Fernandes. Agradeço publicamente a Carl Theodor Dreyer haver filmado “A Palavra”.
2. No dia 25 de Outubro
de 2004 recebi correspondência da Maria João, o primeiro de muitos envelopes. Na
altura a Maria João tratava-me por você.
3. Sobre o conteúdo do
primeiro envelope, posso revelar que continha uma sebenta académica, labirintos
em diferentes tipos de papel, um pequeno livro, outro “maiorzinho” numa edição
de 35 exemplares numerados, fotografias de babilónias e de "babéis" em barro,
paisagens recortadas por palavras… Não sei o que pensei quando me deparei com
tal conteúdo, mas sei que fiquei satisfeito. Pareceu-me poético.
4. Isto foi antes de
ter conhecido pessoalmente a Maria João, antes do encontro junto ao Palácio das
Galveias, antes do jantar no Bairro Alto. À época, a Maria João era mais forte
e eu era mais fraco.
5. Em Maio de 2005,
criei um weblog chamado Insónia e convidei pessoas para se juntarem a mim. A
Maria João chegou ao Insónia em Julho de 2005. Os posts da Maria João eram-me
enviados pelos CTT.
6. Dentro dos envelopes
vinham folhas A4 com indicações precisas sobre a composição dos posts. Alguns envelopes
continham várias folhas que davam para um mês inteiro de publicações.
7. Na
Mesopotâmia, o “Épico de Gilgamesh” foi escrito em tábuas de argila. Foram
necessários muitos anos de evolução para chegarmos aos posts escritos em papéis
enviados por Correio Verde e Azul.
8. Os 69 apontamentos a
que a Maria João chama “bloco verbo-visual”, agora coligidos em livro editado
pela Maquete da Sara Rocio, têm essa origem. Há origens piores.
9. Este não é o único
livro que conheceu no weblog Insónia um primeiro suporte de publicação. Antes
deste, outros ali foram sendo semeados. Peço-vos desculpa por isso.
10. O primeiro destes 69
apontamentos foi publicado a 17 de Março de 2006. Não teve comentários.
11. O primeiro
apontamento a ser comentado foi o terceiro. O Rui Costa comentou: «que bonito».
12. O mais comentado
dos apontamentos foi o 55. Vítor Leal Barros achou graça a uma referência à
drástica, a “banda drástica”. Espero que agora estes apontamentos tenham melhor
sorte.
13. Em 2008, eu e a
Maria João conversávamos no chat do Gmail. A 19 de Maio ela perguntou-me se eu
ia ao lançamento do livro do Vítor. Eu respondi-lhe que ia jantar.
14. Também descobri uma
troca de emails de 2006 em que a Maria João me dá conta de que já é quase
metade, estava a diminuir. Eu respondi-lhe, e passo a citar: «Estou triste. Fui
a Lisboa, vi dois filmes, vim-me embora.»
15. Isto que acabei de
contar nada tem que ver com os apontamentos. Ou talvez tenha. Não sei.
16. Os apontamentos são
comentários aforísticos em que o trabalho plástico da artista Maria João se
conjuga com a existência quotidiana da pessoa Maria João.
17. A pessoa Maria João
e a artista Maria João são uma e a mesma entidade, sendo que só a primeira
sobreviveria sem a segunda. Mas não seria a mesma cosia.
18. O primeiro
apontamento é sobre uma cidade labiríntica. Os labirintos estão muito presentes
no percurso da Maria João. A cabeça de cada um de nós é um labirinto do qual
não se sai. Isso é uma chatice.
19. Outra chatice é
ocuparmos espaços que são eles mesmos emaranhados de vozes, como as cidades que
habitamos.
20. As cidades da Maria
João são compostas por letras que compõem palavras que compõem frases. As
próprias imagens, creio, podem decompor-se em frases compostas de palavras
compostas por letras.
21. O silêncio é o
melhor que as palavras têm.
22. A música é o melhor
que as palavras fazem.
23. «Sempre me senti
estrangeira no mundo», escreve a Maria João no apontamento 4. Somos dois.
Talvez possamos fundar um país, o país dos que se sentem estrangeiros do mundo.
24. Será que nos
sentiríamos estrangeiros no país dos que se sentem estrangeiros no mundo?
25. Há imagens que me
perseguem quando penso no trabalho da Maria João. A de uma cor a ser rasgada é
talvez a mais forte de todas. Dediquei-lhe um conto, não vou repetir-me.
26. Prefiro ler-vos um
apontamento, o sétimo: «Voltei para partir pedra nas palavras; para o verão
amarelo terracota; calor de fornos e a argila nas mãos, feridas nas unhas ao lado
das pedras distantes; terra que já foi pedra no tempo a tratar disso. A
natureza em solos de xistos por camadas nas minhas mãos a escrever. Cidades
invisíveis na terra templo das pedras escrevendo no tempo. E a escrita a
percorrer o labirinto das ruas.»
27. Creio já ter
referido que o “Épico de Gilgamesh” foi escrito em cuneiforme numas tábuas de
argila há coisa de 4000 mil anos. Desde então, foi sempre a descer.
28. Os apontamentos,
que são 69, dão-nos a ver um pouco do que se esconde sob o solo fértil da Maria
João. A Maria João é solo fértil.
29. Lembrei-me agora de
um texto do Alcides, que também escreveu no Insónia: Dizia assim:
Fui dar à passerelle mas só queria a
sandes de courato da moda, que tem uma fina placa de borracha estufada chamada
tofu. Engasguei-me logo e entrei no primeiro sítio que vi, que foi lá, e plo
enjoo da tesúndia viram logo que eu é que era o máfio das pitoskas. Sentei-me
na primeira cadeira e quase espetei um fémur na troncha porque havia lá uma
dama que fugiu a correr e ao segundo passo levantou voo e ficou atarraxada no
tecto, mas ninguém a viu porque devem-na ter confundido com um andaime.
Começaram as raimundas a sair pró corredor, e eu a ronhar que difícil é a
profissão onde não se ganha pra comer. Senti a sensibilidade e comecei a
chorar, e aproximaram-se logo duas a dizer que eu era um lauriano sensível e eu
disse-lhes que não era verdade, que no bairro como a carne crua e que me
atravanco mais com o tofu, e confessaram-me que devia só haver paz e não haver
maldade no mundo e carregaram a chorar e eu disse-lhes que não se chora com a
boca cheia. A que estava pendurada no tecto começou a descer e era o meu ossudo
que partia, mas não partiu, porque aterrou de fronha e devia ter adormecido
porque vinha a ressonar com a tesaurinda a parecer um pão-de-ló todo feito de
tofu. E eu choranguei um pouco mais porque me lembrei dos jogos de mikado que a
maltoska jogava a comandar o capiléu pra não escangalhar a palitada. Foi a
minha sensibilidade que as surpreendeu porque o mundo é muito mau e os adultos
não são sensíveis e meigos como as crianças e os bobis, que é o nome dos
canitos delas porque tá na moda retrós, que é como maria ou mesmo melaurinda,
que era a que me arrastava já para o meio da passerelle, onde ficamos até ao
fim do evento numa metáfora viva de sensibilidade, e poesia, e fôdasse.
30. A Maria João
comentou este texto. Disse: «fôdasse bobi».
31. O Alcides é o Rui
Costa.
32. Lembrei-me deste
texto, suponho, porque era assim o ambiente em que nos cruzávamos online. Uns
queriam textos a cores em negrito, outros enviavam-nos em croqui pelos CTT.
33. E no fim éramos
mais ou menos felizes porque nos estimulávamos, isto é, despertávamos os ânimos
e íamos à procura e partilhávamos e provocávamos e não tínhamos a mania que
sabíamos mais do que os outros e entendíamos que entre as tábuas de argila de
há 4000 anos e o mundo a acontecer é tudo relativo porque ainda há sítios onde
uma pessoa pode sentar-se a olhar o céu e a escutar a água a cantar.
34. «A propósito, já
alguma vez experimentaram partir pedra?» Pergunta a Maria João no apontamento
16.
35. Quem já
experimentou partir pedra que não atire a primeira pedra, limite-se a pôr o dedo
no ar.
36. Eu já parti pedras,
eu já reparti pedras, eu já cortei pedras, eu já queimei pedras, eu já fumei
pedras. Eu já fui um pedrado. Falta-me ser empedrado. Queira Deus que tal não
suceda.
37. Eu nunca parti
pedra em sentido literal. Só parti pedra em sentido metafórico.
38. Em certo sentido,
ler um livro é como partir pedra. A cabeça transforma-se em maço e cinzel.
39. Agora a sério, eu
não estou a brincar.
40. Estes apontamentos
falam de música, de alfabetos, de betos alfa, de Évora, de gatos, das Belas
Artes, e fazem contas: «Dois mil escudos correspondem a dez euros, e cinco
euros a mil paus. O dinheiro antigamente era paus ou contos…»
41. Paro aqui, estou
convencido de que há poesia numa frase como esta. Repito: «O dinheiro
antigamente era paus ou contos».
42. E acrescento um
ponto aos contos: o dinheiro também era em pedra. E era mesmo. Por vezes, a
literalidade mis estúpida encontra-se inusitadamente com a poesia.
43. Gosto muito dos
apontamentos 19 e 20. Depois leiam-nos.
44. Vou tentar dizer-vos
uma coisa daquelas que se dizem nas apresentações de livros. Por exemplo: neste
livro as palavras dialogam com as imagens, as imagens dialogam com o silêncio,
o silêncio dialoga com o papel manchado de tinta, o papel manchado de tinta
dialoga com o leitor, o leitor dialoga com o contemplador, o contemplador
mantém-se calado, não dialoga com ninguém, é eremita, é o mais sábio de todos.
45. Acho que falhei no
propósito de dizer-vos uma coisa daquelas que se dizem nas apresentações de
livros.
46. Estou como a Maria
João do apontamento 21: «aprendi a vomitar só quando estritamente necessário».
47. Reparo, no entanto,
como nestes trabalhos está já o gérmen das obras que mais aprecio da Maria
João: as naturezas mortas sociais.
48. As naturezas mortas
sociais fundem fotografia e pintura, há nelas um jogo de sobreposição de cenas
quotidianas com naturezas mortas eivadas de ironia. Por exemplo, um
pequeno-almoço burguês com a polícia de choque em pano de fundo.
49. Gosto de pessoas
que dizem coisas sérias a brincar. Parecem-me inteligentes.
50. Vou fazer uma
sugestão à Maria João: pinta uma pilha de mendigos, de sem-abrigo, a dormirem
debaixo das árvores de Natal gigantescas que fazem reluzir os olhos dos nossos
concidadãos por esta época. Depois envia pelos CTT aos presidentes de Câmara
que, de Norte a Sul, investem nos festejos de Natal como se estivessem a
combater a fome no mundo.
51. Agora podia ler o
apontamento 24, mas não vou fazê-lo. Leiam-no vocês, por favor.
52. Prefiro ler-vos o
26: «Uma reencarnação de Sócrates passou na minha rua esta madrugada:
reconheci-o pelo andar peculiar e pela barba prateada; ele trazia a miserável
condição humana dentro de um saco plástico, pendurado na mão esquerda.»
53. Não me parece por
acaso que o saco esteja pendurado na mão esquerda.
54. Não vou maçar-vos
com política.
55. No entanto, tudo
isto é político. O homem é uma besta política que, por acaso, faz coisas
bonitas. A maior parte das vezes mais valia ficar quieto.
56. «…tenho a língua
presa, a minha língua prendeu-me. Um dia destes ainda a corto.» Escreve a Maria
João no apontamento 28, ao lado de uma fotografia muito curiosa de calçada
portuguesa e peças de um puzzle espalhado sobre a calçada.
57. A calçada
portuguesa já me ia partindo uma perna. O calçado português faz-me bolhas nos
pés.
58. Perdoem-me a
indiscrição. Se calhar, estou a ser inconveniente.
59. Que se lixe. Há
pessoas muito mais inconvenientes do que eu que não vos incomodam nada.
60. Agora vou ler-vos
um apontamento só por causa das coisas. É sobre árvores de Natal. Leio-o
directamente do bloco.
61. A Maria João também
cita Camões. Ao que parece, fez 500 anos este ano. Camões. Mas ninguém sabe ao
certo quando ele nasceu. Acontece aos melhores.
62. Estou quase a
terminar. Não me apetecia nada falar de Camões. Agora já falei. Pronto.
63. Que mais posso eu
dizer-vos? Que o nosso corpo é uma casa desarrumada? Que a nossa cabeça é um
espaço vazio? Que não vale a pena sonhar com mundos perfeitos quando podemos
cultivar amores-perfeitos no jardim ou em vasos?
64. Agora apetecia-me
cantar. Fiquem descansados. Apetecia-me cantar quando estava a escrever isto,
que já foi há uns dias. Agora já não apetece. Ou será que apetece? Como posso
eu saber agora se quando estiver aí convosco a ler isto me vai apetecer cantar
ou não? O futuro é uma incerteza.
65. E se isto fosse uma
escultura? Olha lá, Maria João, pode um texto ser uma escultura? Partimos pedra
a escrever?
66. Estes apontamentos
também estão cheios de pessoas, às vezes dirigem-se directamente a segundas e
terceiras pessoas. São como esculturas a olhar para nós, ali paradas a olhar
para nós.
67. Tomem lá o
apontamento 53: «Os amigos mortos visitam-me em sonhos, e nem sempre me lembro
das suas mensagens; ao despertar destes sonhos, sinto que não estou sozinha e
as minhas mãos param durante o dia; tenho dívidas a pagar com a vida, ainda não
posso ir para lá, porque há muito a fazer.»
68. Pois há.
69. Gosto do número 69.
Dizem ser erótico, mas a mim lembra-me equilíbrio. O yin yang. Sou uma pessoa
muito espiritual.
Henrique Manuel Bento
Fialho
Livraria Snob, Lisboa,
30 de Novembro de 2024.