segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

DALTON TREVISAN (1925 - 2024)

 



Lê-se por aí que Dalton Trevisan tinha aversão à imprensa. A partir de certa altura, deixou de dar entrevistas, não se deixava fotografar, desapareceu. Tenho cada vez mais admiração por essa gente rara que não se dá a ver. Em Portugal, a discrição de Teresa Veiga ou Fernando Guerreiro são exemplos notáveis, para mais sublinhados com obras que falam por si. B. Traven, de quem a Antígona publicou "O Visitante da Noite e Outros Contos", é um dos meus mitos. Outros casos há, mais ou menos apreciáveis, de quem se esconde por detrás de um nome ou simplesmente tudo faz para evitar os holofotes, escapando à vanidade que engole a maioria como um pântano.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

50 X 13

 


“Nighthawks at the Diner”, Tom Waits.
 
Se tudo correr bem, hei-de morrer um dia destes. A vida eterna não é hipótese que me seduza. Infelizmente, a confiar no método indutivo, irei desta para melhor sem ter assistido a um concerto de Tom Waits. E isso sim, é hipótese que me desgosta. Creio ter sido por 1992 que comecei a ouvi-lo, “Bone Machine” rodava numa cassete. Só depois terei adquirido “Nighthawks at the Diner” (1975), surpreendente gravação ao vivo de um excepcional contador de histórias. A música de Tom Waits é devedora do blues, mas também do cabaret, do vaudeville, das canções de Kurt Weill para o teatro de Brecht, do circo. A voz cavernosa foi-se formando ao longo dos anos, adquirindo em alguns momentos modalidades guturais que imprimem às canções ambientes monstruosos, por vezes soturnos, românticos nesse sentido assombroso do belo horrível. Lembro-me de ouvir “The Black Rider” (1993) vezes em conta, estrondoso conjunto de composições para uma peça de Robert Wilson com a participação de William S. Burroughs. Esta teatralidade, por assim dizer, marca presença muito cedo na música de Tom Waits, transportando-nos para cenários nocturnos onde confluem todos os “vencidos da vida”, se bem que, aqui e acolá, com pontos luminosos ao fundo dos túneis onde a solidão adormece embriagada. Só mesmo Tom Waits poderia escrever uma canção de Natal aceitável. É o caso desse “Christmas Card From a Hooker in Minneapolis”, num álbum, “Blue Valentine” (1978), todo ele natalício. "Heartattack and Vine" (1980), já agora, vai na mesma linha. Enfim, os Pogues também não se ficaram atrás com “Fairytale of New York”. Ainda há natais suportáveis. Diz que amanhã cumprirá 75. Ah, valente!

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

O PROBLEMA DA AUTOAFIRMAÇÃO

 
"É nos mostruários da civilização que melhor aprendemos a valorizar a elegância da discrição, tão mais sofisticada e urbana do que a agitação do peralvilho que se exprime de modo enviesado em busca de autoafirmação."
Juraan Vink, nos "Diários de Guerra".

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

TRISTE SINA

 
É uma chatice este desperdício do ímpeto celebrativo que contamina a vetusta nação, levando a que quase invariavelmente se passe ao lado da discussão dos problemas em benefício da distribuição de abraços, apalpadelas, muito amor e amizade desprovidos de autenticidade. Tudo para inglês ver e o pito egóico consolar.
Tope-se, a título de exemplo, como os putativos 500 anos de Camões passaram ao lado da utilização da épica para glorificação de uma história colonialista que ainda hoje assoma à boca de muita gentalha. Ontem, num programa humorístico desgraçadamente sem graça, lá apareceu um a advogar que "a xenofobia salva vidas" porque, presumo, nos faz desconfiar dos terríveis malfeitores que vêm de fora. Infelizmente, não nos protege dos estúpidos que temos cá dentro.
Os 50 do 25A são mais um exemplo de como se consegue passar ao lado do que é relevante, aquela matéria que nos prepara para o futuro e a poucos parece importar. O rissol na cocktail party é mais relevante.
Mais do que a vontade de derrubar um regime bafiento, foi a guerra colonial que motivou a revolução militar. Era essencial perceber porquê, mostrar aos de hoje o que andámos a fazer nas ex-colónias, os crimes de guerra por nós perpetrados, essas coisas de que pouco se fala para não assumirmos o racismo que nos corre nas veias. Enquanto estes problemas não forem clara e abertamente discutidos, sob pretexto de feridas saradas que mais não são do que pensos rápidos em gangrenas, vamos continuar a ter quem defenda a xenofobia como disfibrilhador.
As celebrações, neste país, são sempre areia atirada aos olhos do ceguinho, regada a beijinhos, abraços, condecorações, chantilly nos egos das elites para lambidelas movediças. Triste sina.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

domingo, 1 de dezembro de 2024

FOGUEIRA

 
É o Ruy Belo em Rio Maior, é o Mário Botas na Nazaré, é o Armando Silva Carvalho em Óbidos... Anos e anos de paleio sem nada de consistente que se veja. O melhor é mesmo fazer uma grande fogueira antes de ir desta para melhor, poupa-se na conversa fiada, nas boas intenções e na saloiice que faz os encantos de quem se deslumbra com festas e festinhas e festivais.

sábado, 30 de novembro de 2024

69 NOTAS SOBRE 69 APONTAMENTOS

 


1. Se Carl Theodor Dreyer não tivesse filmado “A Palavra” (1955), eu não teria conhecido a Maria João Lopes Fernandes. Agradeço publicamente a Carl Theodor Dreyer haver filmado “A Palavra”.

2. No dia 25 de Outubro de 2004 recebi correspondência da Maria João, o primeiro de muitos envelopes. Na altura a Maria João tratava-me por você.

3. Sobre o conteúdo do primeiro envelope, posso revelar que continha uma sebenta académica, labirintos em diferentes tipos de papel, um pequeno livro, outro “maiorzinho” numa edição de 35 exemplares numerados, fotografias de babilónias e de "babéis" em barro, paisagens recortadas por palavras… Não sei o que pensei quando me deparei com tal conteúdo, mas sei que fiquei satisfeito. Pareceu-me poético.

4. Isto foi antes de ter conhecido pessoalmente a Maria João, antes do encontro junto ao Palácio das Galveias, antes do jantar no Bairro Alto. À época, a Maria João era mais forte e eu era mais fraco.

5. Em Maio de 2005, criei um weblog chamado Insónia e convidei pessoas para se juntarem a mim. A Maria João chegou ao Insónia em Julho de 2005. Os posts da Maria João eram-me enviados pelos CTT.

6. Dentro dos envelopes vinham folhas A4 com indicações precisas sobre a composição dos posts. Alguns envelopes continham várias folhas que davam para um mês inteiro de publicações. 

7. Na Mesopotâmia, o “Épico de Gilgamesh” foi escrito em tábuas de argila. Foram necessários muitos anos de evolução para chegarmos aos posts escritos em papéis enviados por Correio Verde e Azul.

8. Os 69 apontamentos a que a Maria João chama “bloco verbo-visual”, agora coligidos em livro editado pela Maquete da Sara Rocio, têm essa origem. Há origens piores.

9. Este não é o único livro que conheceu no weblog Insónia um primeiro suporte de publicação. Antes deste, outros ali foram sendo semeados. Peço-vos desculpa por isso.

10. O primeiro destes 69 apontamentos foi publicado a 17 de Março de 2006. Não teve comentários.

11. O primeiro apontamento a ser comentado foi o terceiro. O Rui Costa comentou: «que bonito».

12. O mais comentado dos apontamentos foi o 55. Vítor Leal Barros achou graça a uma referência à drástica, a “banda drástica”. Espero que agora estes apontamentos tenham melhor sorte.

13. Em 2008, eu e a Maria João conversávamos no chat do Gmail. A 19 de Maio ela perguntou-me se eu ia ao lançamento do livro do Vítor. Eu respondi-lhe que ia jantar.

14. Também descobri uma troca de emails de 2006 em que a Maria João me dá conta de que já é quase metade, estava a diminuir. Eu respondi-lhe, e passo a citar: «Estou triste. Fui a Lisboa, vi dois filmes, vim-me embora.»

15. Isto que acabei de contar nada tem que ver com os apontamentos. Ou talvez tenha. Não sei.

16. Os apontamentos são comentários aforísticos em que o trabalho plástico da artista Maria João se conjuga com a existência quotidiana da pessoa Maria João.   

17. A pessoa Maria João e a artista Maria João são uma e a mesma entidade, sendo que só a primeira sobreviveria sem a segunda. Mas não seria a mesma cosia.

18. O primeiro apontamento é sobre uma cidade labiríntica. Os labirintos estão muito presentes no percurso da Maria João. A cabeça de cada um de nós é um labirinto do qual não se sai. Isso é uma chatice.

19. Outra chatice é ocuparmos espaços que são eles mesmos emaranhados de vozes, como as cidades que habitamos. 

20. As cidades da Maria João são compostas por letras que compõem palavras que compõem frases. As próprias imagens, creio, podem decompor-se em frases compostas de palavras compostas por letras.

21. O silêncio é o melhor que as palavras têm.

22. A música é o melhor que as palavras fazem.

23. «Sempre me senti estrangeira no mundo», escreve a Maria João no apontamento 4. Somos dois. Talvez possamos fundar um país, o país dos que se sentem estrangeiros do mundo.

24. Será que nos sentiríamos estrangeiros no país dos que se sentem estrangeiros no mundo?

25. Há imagens que me perseguem quando penso no trabalho da Maria João. A de uma cor a ser rasgada é talvez a mais forte de todas. Dediquei-lhe um conto, não vou repetir-me.

26. Prefiro ler-vos um apontamento, o sétimo: «Voltei para partir pedra nas palavras; para o verão amarelo terracota; calor de fornos e a argila nas mãos, feridas nas unhas ao lado das pedras distantes; terra que já foi pedra no tempo a tratar disso. A natureza em solos de xistos por camadas nas minhas mãos a escrever. Cidades invisíveis na terra templo das pedras escrevendo no tempo. E a escrita a percorrer o labirinto das ruas.»

27. Creio já ter referido que o “Épico de Gilgamesh” foi escrito em cuneiforme numas tábuas de argila há coisa de 4000 mil anos. Desde então, foi sempre a descer.

28. Os apontamentos, que são 69, dão-nos a ver um pouco do que se esconde sob o solo fértil da Maria João. A Maria João é solo fértil.

29. Lembrei-me agora de um texto do Alcides, que também escreveu no Insónia: Dizia assim:

Fui dar à passerelle mas só queria a sandes de courato da moda, que tem uma fina placa de borracha estufada chamada tofu. Engasguei-me logo e entrei no primeiro sítio que vi, que foi lá, e plo enjoo da tesúndia viram logo que eu é que era o máfio das pitoskas. Sentei-me na primeira cadeira e quase espetei um fémur na troncha porque havia lá uma dama que fugiu a correr e ao segundo passo levantou voo e ficou atarraxada no tecto, mas ninguém a viu porque devem-na ter confundido com um andaime. Começaram as raimundas a sair pró corredor, e eu a ronhar que difícil é a profissão onde não se ganha pra comer. Senti a sensibilidade e comecei a chorar, e aproximaram-se logo duas a dizer que eu era um lauriano sensível e eu disse-lhes que não era verdade, que no bairro como a carne crua e que me atravanco mais com o tofu, e confessaram-me que devia só haver paz e não haver maldade no mundo e carregaram a chorar e eu disse-lhes que não se chora com a boca cheia. A que estava pendurada no tecto começou a descer e era o meu ossudo que partia, mas não partiu, porque aterrou de fronha e devia ter adormecido porque vinha a ressonar com a tesaurinda a parecer um pão-de-ló todo feito de tofu. E eu choranguei um pouco mais porque me lembrei dos jogos de mikado que a maltoska jogava a comandar o capiléu pra não escangalhar a palitada. Foi a minha sensibilidade que as surpreendeu porque o mundo é muito mau e os adultos não são sensíveis e meigos como as crianças e os bobis, que é o nome dos canitos delas porque tá na moda retrós, que é como maria ou mesmo melaurinda, que era a que me arrastava já para o meio da passerelle, onde ficamos até ao fim do evento numa metáfora viva de sensibilidade, e poesia, e fôdasse.

30. A Maria João comentou este texto. Disse: «fôdasse bobi».

31. O Alcides é o Rui Costa.

32. Lembrei-me deste texto, suponho, porque era assim o ambiente em que nos cruzávamos online. Uns queriam textos a cores em negrito, outros enviavam-nos em croqui pelos CTT.

33. E no fim éramos mais ou menos felizes porque nos estimulávamos, isto é, despertávamos os ânimos e íamos à procura e partilhávamos e provocávamos e não tínhamos a mania que sabíamos mais do que os outros e entendíamos que entre as tábuas de argila de há 4000 anos e o mundo a acontecer é tudo relativo porque ainda há sítios onde uma pessoa pode sentar-se a olhar o céu e a escutar a água a cantar.

34. «A propósito, já alguma vez experimentaram partir pedra?» Pergunta a Maria João no apontamento 16.

35. Quem já experimentou partir pedra que não atire a primeira pedra, limite-se a pôr o dedo no ar.

36. Eu já parti pedras, eu já reparti pedras, eu já cortei pedras, eu já queimei pedras, eu já fumei pedras. Eu já fui um pedrado. Falta-me ser empedrado. Queira Deus que tal não suceda.

37. Eu nunca parti pedra em sentido literal. Só parti pedra em sentido metafórico.

38. Em certo sentido, ler um livro é como partir pedra. A cabeça transforma-se em maço e cinzel.

39. Agora a sério, eu não estou a brincar.

40. Estes apontamentos falam de música, de alfabetos, de betos alfa, de Évora, de gatos, das Belas Artes, e fazem contas: «Dois mil escudos correspondem a dez euros, e cinco euros a mil paus. O dinheiro antigamente era paus ou contos…»

41. Paro aqui, estou convencido de que há poesia numa frase como esta. Repito: «O dinheiro antigamente era paus ou contos».

42. E acrescento um ponto aos contos: o dinheiro também era em pedra. E era mesmo. Por vezes, a literalidade mis estúpida encontra-se inusitadamente com a poesia.

43. Gosto muito dos apontamentos 19 e 20. Depois leiam-nos.

44. Vou tentar dizer-vos uma coisa daquelas que se dizem nas apresentações de livros. Por exemplo: neste livro as palavras dialogam com as imagens, as imagens dialogam com o silêncio, o silêncio dialoga com o papel manchado de tinta, o papel manchado de tinta dialoga com o leitor, o leitor dialoga com o contemplador, o contemplador mantém-se calado, não dialoga com ninguém, é eremita, é o mais sábio de todos.

45. Acho que falhei no propósito de dizer-vos uma coisa daquelas que se dizem nas apresentações de livros.

46. Estou como a Maria João do apontamento 21: «aprendi a vomitar só quando estritamente necessário».

47. Reparo, no entanto, como nestes trabalhos está já o gérmen das obras que mais aprecio da Maria João: as naturezas mortas sociais.

48. As naturezas mortas sociais fundem fotografia e pintura, há nelas um jogo de sobreposição de cenas quotidianas com naturezas mortas eivadas de ironia. Por exemplo, um pequeno-almoço burguês com a polícia de choque em pano de fundo.

49. Gosto de pessoas que dizem coisas sérias a brincar. Parecem-me inteligentes.

50. Vou fazer uma sugestão à Maria João: pinta uma pilha de mendigos, de sem-abrigo, a dormirem debaixo das árvores de Natal gigantescas que fazem reluzir os olhos dos nossos concidadãos por esta época. Depois envia pelos CTT aos presidentes de Câmara que, de Norte a Sul, investem nos festejos de Natal como se estivessem a combater a fome no mundo.

51. Agora podia ler o apontamento 24, mas não vou fazê-lo. Leiam-no vocês, por favor.

52. Prefiro ler-vos o 26: «Uma reencarnação de Sócrates passou na minha rua esta madrugada: reconheci-o pelo andar peculiar e pela barba prateada; ele trazia a miserável condição humana dentro de um saco plástico, pendurado na mão esquerda.»

53. Não me parece por acaso que o saco esteja pendurado na mão esquerda.

54. Não vou maçar-vos com política.

55. No entanto, tudo isto é político. O homem é uma besta política que, por acaso, faz coisas bonitas. A maior parte das vezes mais valia ficar quieto.

56. «…tenho a língua presa, a minha língua prendeu-me. Um dia destes ainda a corto.» Escreve a Maria João no apontamento 28, ao lado de uma fotografia muito curiosa de calçada portuguesa e peças de um puzzle espalhado sobre a calçada.

57. A calçada portuguesa já me ia partindo uma perna. O calçado português faz-me bolhas nos pés.

58. Perdoem-me a indiscrição. Se calhar, estou a ser inconveniente.

59. Que se lixe. Há pessoas muito mais inconvenientes do que eu que não vos incomodam nada.

60. Agora vou ler-vos um apontamento só por causa das coisas. É sobre árvores de Natal. Leio-o directamente do bloco.

61. A Maria João também cita Camões. Ao que parece, fez 500 anos este ano. Camões. Mas ninguém sabe ao certo quando ele nasceu. Acontece aos melhores.

62. Estou quase a terminar. Não me apetecia nada falar de Camões. Agora já falei. Pronto.

63. Que mais posso eu dizer-vos? Que o nosso corpo é uma casa desarrumada? Que a nossa cabeça é um espaço vazio? Que não vale a pena sonhar com mundos perfeitos quando podemos cultivar amores-perfeitos no jardim ou em vasos?

64. Agora apetecia-me cantar. Fiquem descansados. Apetecia-me cantar quando estava a escrever isto, que já foi há uns dias. Agora já não apetece. Ou será que apetece? Como posso eu saber agora se quando estiver aí convosco a ler isto me vai apetecer cantar ou não? O futuro é uma incerteza.

65. E se isto fosse uma escultura? Olha lá, Maria João, pode um texto ser uma escultura? Partimos pedra a escrever?

66. Estes apontamentos também estão cheios de pessoas, às vezes dirigem-se directamente a segundas e terceiras pessoas. São como esculturas a olhar para nós, ali paradas a olhar para nós.

67. Tomem lá o apontamento 53: «Os amigos mortos visitam-me em sonhos, e nem sempre me lembro das suas mensagens; ao despertar destes sonhos, sinto que não estou sozinha e as minhas mãos param durante o dia; tenho dívidas a pagar com a vida, ainda não posso ir para lá, porque há muito a fazer.»

68. Pois há.

69. Gosto do número 69. Dizem ser erótico, mas a mim lembra-me equilíbrio. O yin yang. Sou uma pessoa muito espiritual.

Henrique Manuel Bento Fialho
Livraria Snob, Lisboa, 30 de Novembro de 2024.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

BLACK FRIDAY

O dia em que apareciam uns parvos a comprar livros com desconto em cartão que depois podia ser descontado noutros livros com desconto em cartão para desconto em mais livros com desconto em cartão e assim sucessivamente.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

ESPÍRITO NATALÍCIO

 
Odeio o Natal, a hipocrisia, a piroseira, o desperdício e o consumismo desenfreado, as bichas intermináveis de gente para vilas natais e wonderlands e christmas villages, as centenas de milhares de euros desperdiçados em iluminações e fogos de artifícios, mesmo por cima das cabeças de gente a dormir na rua e a passar fome. Tudo isto é obsceno e torna bem claro que com tanta gente deslumbrada com estas coisas não vale a pena queixarmo-nos dos políticos que temos, eles são um reflexo da sociedade que os gera nesta lógica ignominiosa do entretenimento. Mais facilmente o povo opta por um político que promete o mais faustoso Natal de sempre do que num que se comprometa a erradicar a pobreza. Não nos admiremos, portanto, que estas notícias convivam pacificamente num mesmo bloco noticioso: "As Nações Unidas dizem que são precisos 17 mil milhões de euros em ajuda internacional para combater a fome", "EUA aprovaram venda de mais de 20 mil milhões de dólares de armamento a Israel"... Tenham um bom domingo.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

HOMENS

O meu crescente interesse pelos livros, pela música, pelo cinema, pela filosofia, pela arte, enfim, o meu sempre crescente interesse pelas criações humanas é proporcional ao meu crescente desinteresse pelos homens. Não digo as pessoas, não digo a humanidade. Digo mesmo os homens em geral, essa comunidade microbiana chamada civilização.

Juraan Vink, "Diários".

terça-feira, 26 de novembro de 2024

PASSA A ÁGUA

"O Gouveia e Melro nem canta bem nem m' alegra. Calado era um rouxinol."

Quitéria, depois de ver o Almirante Passaláqua na TV.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

50 X 12

 


“Ser Solidário”, José Mário Branco.
 

Estou aqui a comemorar o vinte e cinco de Novembro porque, antes de mais, sou dado a comemorações e, além disso, o vinte e cinco de Novembro é o tricentésimo vigésimo nono dia do ano do calendário gregoriano, o que significa que é um dia muito importante. Foi neste dia que nasceu Ana de Jesus e faleceu Pedro Primeiro de Alexandria, portanto não me venham cá com coisas: comemoremos. Acrescento que devíamos comemorar mais vinte e cincos, pois a soma de dois com cinco dá sete, e sete é um número mágico. São sete as cores do arco-íris, os dias da semana, as notas musicais, os mares e os continentes e muitas coisas mais de insofismável relevância na história da humanidade em particular e do mundo em geral. Escolhi o álbum “Ser Solidário”, de José Mário Branco, para comemorar este vinte e cinco de Novembro de dois mil e vinte e quatro, ano dos meus cinquenta anos, o dobro de vinte e cinco. É uma edição de que gosto muito, sobretudo porque além das canções tem um tema extra intitulado “FMI”, que, não por acaso, tem a duração de vinte e cinco minutos. Como vêem, o vinte e cinco é um número especial. O que seria de nós sem os vinte e cincos? Eu gosto de ver as pessoas aperaltadas para as comemorações, eles de fato e gravata, elas de fato cumprido e cabelo arranjado, devidamente maquilhadas, unhas a preceito, talvez com um blazer à medida e calças a condizer. Com saltos altos, não muito, o suficiente, quanto baste. Todos maravilhosamente penteados, excepto os carecas. Toda essa nuvem de perfumes à deriva no ar embriaga-me e deixa-me tonto de comemorações, dá-me logo para ir para a rua e apanhar um táxi a caminho do melhor restaurante onde, à mesa, poderei manifestar-me contra as injustiças do mundo degustando arroz de lavagante com um Château d’Yquem de 1811. Não faço por menos, é para meninos. Portanto, deixem-se de lamentações. Nenhum de nós tem culpa do estado a que isto chegou, se é que chegou a algum estado. Estamos bem, muito obrigado, vamos indo, tudo na boa, adiante. Temos de ser uns para os outros, comemorar, brindar ao bem que fazemos e nos fazem, ao sucesso e ao empreendedorismo e aos unicórnios e à luz que nos alumia nas horas adversas, quando nos falta, por exemplo, papel higiénico. Por mim, comemoremos o de Abril, o de Novembro, o de Dezembro, e de premeio venham daí as sopas dos pobres, os alojamentos locais, dezassete milhões para matar a fome com dezassete milhões de pólvora a derrear escolas e hospitais e teatros e outros castelos de areia. Sou solidário, comemoro, como, não calo, porque a mim ninguém me cala, eu grito a plenos pulmões: viva a democracia liberal que devolve pacientes por táxi e lhes cobra a conta, vivam a chaise-longue de Freud e as foices e os martelos recheados com doce de ovos, viva o amor com que nos fodemos uns aos outros, desculpem a linguagem, mas se é por bem, é por bem, viva o fado e o corridinho e as iluminações de Natal a preço de saldo e o cozido à portuguesa no centro de trabalho e a vida está difícil. Setecentos e cinquenta mil euros em luzinhas a piscar nas ruas da capital, em honra dos sem-abrigo disseminados pelos cantos onde dormem e defecam e comem. Que os seus olhos brilhem de comoção como os meus hoje brilham pelo vinte e cinco, o que me levará da Praça da Figueira aos Prazeres. Qual é a vossa, ó meus?

DOMESTICADORA DE GIRASSÓIS

 


Os 14 contos de Domesticadora de Girassóis, mais extensos do que é habitual neste autor, exploram universos fantasmagóricos com personagens que tentam equilibrar-se entre o real e o imaginário. O que há de anómalo e de paradoxal nas situações recriadas encontra na multiplicidade formal, que vai da ficção narrativa ao poético, da crónica ao drama, do relato autobiográfico à prosa ensaística e ao diário, vias de expressão para seres cuja existência está em permanente conflito com um mundo onde a separação entre caos e ordem perdeu qualquer sentido.

236 páginas
Maio de 2024
 

Venda directa – pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
 
Também disponível 

na Snob: https://www.livrariasnob.pt/product/domesticadora-de-girassois ;





domingo, 24 de novembro de 2024

UM PAÍS QUE PULULA

 
Nos últimos dias li livros de Ana Freitas Reis, Inês Morão Dias, Maria Brás Ferreira e Susana Araújo. Cada qual com os seus defeitos e virtudes, são todos livros facilmente recomendáveis. De quatro autoras nascidas já depois do 25 de Abril de 1974. O país pula e avança.

UM MAL NUNCA VEM SÓ

 
Gouveia e Melo, Marques Mendes, Seguro, Passos Coelho... Um país transformado numa câmara de horrores. Para isto, prefiro o Tino das rãs.

DE MÁ CONDIÇÃO

 


Calhou assim, não foi propositado. Chegou-nos ontem, Dia Mundial da Árvore e da Poesia, este segundo volume da Colecção Insónia. O primeiro foi "A Dança das Feridas". Esperámos 13 anos por ele, eu, a Maria João Lopes Fernandes e o Pedro Serpa.
 
Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição.
 
Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por Messenger (Facebook, Instagram) ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design e a composição é do Pedro Serpa.
 
Em memória de minha mãe, Clarisse Maria Tavares Bento.
 
Saúde.

sábado, 23 de novembro de 2024

UM POEMA DE INÊS MORÃO DIAS

 


O difícil no poema
é o adjectivo
dizem uns
é o verbo
dizem outros
é a tentação de esvaziados
obscuros sangues toldarem
vícios de dizer
é a especificação desmedida de
obsessões irrisórias, fósforos
numerados
é o pudor do eu e do seu contrário
a apropriação da paisagem
é a decisão entre
impressionismo ou
engrenagem
ser pensante ou
comer uma sandes
as pontas dos dedos e um zumbido
ou o altifalante de uma
manifestação

o fácil é o mistério
dádiva superlativa

Inês Morão Dias, in Par de Olhos, Fresca, Poetria, Agosto de 2019, p. 45.

EQUÍVOCOS

 
Em conversa com Fernanda, a alfarrabista, fiquei a saber de um coleccionador que sofria muito por lhe faltar uma primeira edição de "Bichos". Ela lá soube de um exemplar em leilão e chegou-se à frente, para desespero dos herdeiros do comprador. Pagou 5 mil euros pelo volume. Morreu uma semana depois de ter o desejado livro nas mãos, porventura sem sequer o ter lido. Escutada a história, abri eu cordões à bolsa e arrematei umas odes de António Quadros também em primeira edição. Chegado a casa, apercebo-me de que aquele António Quadros não é o António Quadros. É António, é Quadros, mas é outro. A vida é assim, uma acumulação de equívocos.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

LOOP

 
Ligo a televisão e dou logo com uns facínoras a gabarem-se das armas que têm ao dispor para intimidar e destruir. São informações repetidas em loop, para que não restem dúvidas e o medo nos demova de respirar. É nesta alegria diária que estamos metidos, pelo que não vale a pena disfarçar a deformação, a degenerescência, os contornos aberrantes disso a que ainda se dá o nome de humanidade. A bondade é rara, não a desprezemos.