segunda-feira, 14 de maio de 2018

DIÁLOGOS MARADOS / UM MALUCO VEM POUSAR-ME NA MÃO



Durante largos anos braço direito de Vítor Silva Tavares na editora &etc, Rui Caeiro (Vila Viçosa, 1943) é autor de vários livros onde a poesia e o aforismo convivem sem que se dê conta de grandes males para qualquer uma das formas. Disso são exemplo livros tais como Olhar o Nada, Ver a Deus (Averno, Abril de 2003), o bestiário O Carnaval dos Animais (Letra Livre, Outubro de 2008) ou mesmo a colectânea erótica O Quarto Azul e Outros Poemas (Letra Livre, Março de 2011). Mais recentemente, a Livraria Snob publicou do mesmo autor o díptico Diálogos Marados/Um Maluco Vem Pousar-me na Mão (Livraria Snob, Março de 2018) e um desdobrável em acordeão com três inéditos. São textos basicamente biográficos, memórias, recordações, evocações onde à experiência vivida se acrescentam discretíssimas sentenças pessoais:

Aos poetas categoria particular de malucos olho-os. Olho-os demoradamente.
Conheço-os a todos ou quase (enfim, na medida em que), e olho-os de A a Z, do solar António Barahona ao nocturno Zetho Gonçalves. Olho-os enlevado.
E um pouco desencantado também, devo dizer, com o estranho conjunto.
Olho o triste rebanho dos poetas e dou-me conta. Todos eles estão rezando crentes, ateus, agnósticos, ou coisa nenhuma todos eles rezando. Pedindo a Deus a sua gota de água.
Todos e cada um a um Deus qualquer implorando que não lhes falte nunca a sua gota de inspiração e loucura, água para a sua sede. (Um Maluco Vem Pousar-me Na Mão, p. 59)

   Esta manifestação de desencanto, refira-se, é uma raridade no conjunto dos textos, muito mais empenhados na fixação de historietas onde perpassam o convívio amistoso e o anedótico, encontros inesperados e instantes perdidos algures entre o incómodo e a ternura, numa jornada pelas memórias familiares que inclui momentos de cavaqueira com amigos, recordações de infância, aventuras, desventuras, até flashes televisionados. Nos diálogos, encontramos como interlocutores gente anónima e gente com nome próprio, facilmente identificável, familiares e companheiros inomináveis, tendo como panos de fundo essencialmente Lisboa, mas também Madrid, Paris, Macau... O tom geral é o de uma nostalgia encantadora, sendo que a espaços notamos uma espécie de contabilidade a ajustar com a vida surgindo à superfície do texto como a comoção surge na pele:

   Não sei se algum dos presentes à cena teve consciência de que aquela era a última vez que o meu pai saía à rua.
   Caminha devagar, pesadamente e olha o chão com ar ausente. Não me aproximo e ele também não me vê. Apercebe-se, porém, da presença de alguém que vem a descer a rua em passo rápido: uma rapariga de mini-saia, busto espetado e sorriso de vencedora. Durante meio segundo, não mais, ela olha-o com atenção. Com uma curiosidade distraída (mais um velhinho a morrer: o que é que isso tem?). Ele olha longamente a miúda, durante uns longos poucos segundos. Como quem se despede da vida, nos olhos talvez o brilho de uma curiosidade, de uma avidez antiga.
   Ninguém ali diz palavra. E a força do que não se disse fica a doer no peito de um filho. (Diálogos Marados, p. 113)

   Já na casa dos 70, Rui Caeiro dirige-se deste modo aos seus contemporâneos, contando histórias de vida, a sua, com o descomprometimento de quem, por pouco dever, nada teme. Ateu declarado, mantém uma relação complexa com o tema Deus: «Filhos de Deus também? / Porventura mais enteados que outra coisa» (Um Maluco Vem Pousar-me Na Mão, p. 58). À ideia do sagrado enquanto princípio a partir do qual podemos empreender um sentido da vida, sobrepõe-se nestes textos um elogio do profano na figura da loucura. Em última instância, é na aceitação da anomalia que vislumbramos um sentido para a existência. Impressiona a serenidade do discurso, a tranquilidade que transparece no modo de dizer, como que se no termo da viagem empreendida ficasse por declarar a fatuidade dos grandes empreendimentos filosóficos. Afinal, a vida vive-se de uma forma simples quando se tem por horizonte, desde cedo, a inevitabilidade do fim. À memória caberá registar o passo lento, mas seguro, do caminhante. E daqueles que a seu lado empreenderam a jornada.

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