Durante largos anos braço direito de Vítor
Silva Tavares na editora &etc, Rui Caeiro (Vila Viçosa, 1943) é autor de
vários livros onde a poesia e o aforismo convivem sem que se dê conta de
grandes males para qualquer uma das formas. Disso são exemplo livros tais como
Olhar o Nada, Ver a Deus (Averno, Abril de 2003), o bestiário O Carnaval dos
Animais (Letra Livre, Outubro de 2008) ou mesmo a colectânea erótica O Quarto
Azul e Outros Poemas (Letra Livre, Março de 2011). Mais recentemente, a
Livraria Snob publicou do mesmo autor o díptico Diálogos Marados/Um Maluco Vem
Pousar-me na Mão (Livraria Snob, Março de 2018) e um desdobrável em acordeão com
três inéditos. São textos basicamente biográficos, memórias, recordações,
evocações onde à experiência vivida se acrescentam discretíssimas sentenças
pessoais:
Aos poetas —
categoria particular de malucos — olho-os. Olho-os demoradamente.
Conheço-os a todos ou quase
(enfim, na medida em que), e olho-os de A a Z, do solar António Barahona ao
nocturno Zetho Gonçalves. Olho-os enlevado.
E um pouco desencantado
também, devo dizer, com o estranho conjunto.
Olho o triste rebanho dos
poetas e dou-me conta. Todos eles estão rezando — crentes, ateus, agnósticos, ou
coisa nenhuma — todos eles rezando. Pedindo a Deus a sua gota de água.
Todos e cada um a um Deus
qualquer implorando que não lhes falte nunca a sua gota de inspiração e
loucura, água para a sua sede. (Um Maluco Vem Pousar-me Na Mão, p. 59)
Esta manifestação de desencanto, refira-se,
é uma raridade no conjunto dos textos, muito mais empenhados na fixação de
historietas onde perpassam o convívio amistoso e o anedótico, encontros
inesperados e instantes perdidos algures entre o incómodo e a ternura, numa jornada
pelas memórias familiares que inclui momentos de cavaqueira com amigos,
recordações de infância, aventuras, desventuras, até flashes televisionados.
Nos diálogos, encontramos como interlocutores gente anónima e gente com nome
próprio, facilmente identificável, familiares e companheiros inomináveis, tendo
como panos de fundo essencialmente Lisboa, mas também Madrid, Paris, Macau... O
tom geral é o de uma nostalgia encantadora, sendo que a espaços notamos uma
espécie de contabilidade a ajustar com a vida surgindo à superfície do texto
como a comoção surge na pele:
Não sei se algum dos presentes à cena teve
consciência de que aquela era a última vez que o meu pai saía à rua.
Caminha devagar, pesadamente e olha o chão
com ar ausente. Não me aproximo e ele também não me vê. Apercebe-se, porém, da
presença de alguém que vem a descer a rua em passo rápido: uma rapariga de
mini-saia, busto espetado e sorriso de vencedora. Durante meio segundo, não
mais, ela olha-o com atenção. Com uma curiosidade distraída (mais um velhinho a
morrer: o que é que isso tem?). Ele olha longamente a miúda, durante uns longos
poucos segundos. Como quem se despede da vida, nos olhos talvez o brilho de uma
curiosidade, de uma avidez antiga.
Ninguém ali diz palavra. E a força do que
não se disse fica a doer no peito de um filho. (Diálogos Marados, p. 113)
Já na casa dos 70, Rui Caeiro dirige-se deste
modo aos seus contemporâneos, contando histórias de vida, a sua, com o
descomprometimento de quem, por pouco dever, nada teme. Ateu declarado, mantém uma
relação complexa com o tema Deus: «Filhos de Deus também? / Porventura mais
enteados que outra coisa» (Um Maluco Vem Pousar-me Na Mão, p. 58). À ideia do
sagrado enquanto princípio a partir do qual podemos empreender um sentido da
vida, sobrepõe-se nestes textos um elogio do profano na figura da loucura. Em
última instância, é na aceitação da anomalia que vislumbramos um sentido para a
existência. Impressiona a serenidade do discurso, a tranquilidade que
transparece no modo de dizer, como que se no termo da viagem empreendida
ficasse por declarar a fatuidade dos grandes empreendimentos filosóficos.
Afinal, a vida vive-se de uma forma simples quando se tem por horizonte, desde
cedo, a inevitabilidade do fim. À memória caberá registar o passo lento, mas
seguro, do caminhante. E daqueles que a seu lado empreenderam a jornada.
Sem comentários:
Enviar um comentário