terça-feira, 1 de maio de 2018

DÚVIDAS


Por que correm debaixo de chuva as duas raparigas encharcadas?
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Dois corvos aos saltos nas imediações do Hospital. Um crocita pelos que nascem, outro crocita pelos que morrem.
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Episódio de urgência: espera.
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Na sala de triagem, dão-te uma pulseira com a cor dos girassóis de Van Gogh depois de ouvirem queixas, medirem tensão e temperatura. O enfermeiro abana a cabeça e sorri ligeiramente, como quem nos desafia a tentar perceber o que lhe vai no pensamento.
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Na ausência de lugares sentados, encostas-te à parede a fingir que lês um livro. Felizmente o livro é bom. De fingir, passas mesmo a lê-lo.
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Os corredores estão cheios de macas. Escutas os velhos em surdina, lamentos, gemidos, gritos. Nada te incomoda tanto como a respiração ofegante de quem espera.
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Comprimido debaixo da língua, análises à urina e ao sangue, cateter, raio x. Os olhos da enfermeira.
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Por que correm debaixo de sol, aos pares, em fila, sozinhos, os atletas domésticos? São uma espécie de arte urbana.
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Sentado a teu lado, um homem queixa-se de não ter falta de ar. Não percebe por que lhe deram bombas. Ele tem líquido nos pulmões, não tem falta de ar.
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Subitamente julgas ouvir o mar na sala de onde chegava o choro das crianças. Será alucinação? Serão as mães?
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Momento zen: o segurança senta-se numa cadeira de rodas a pedido da utente, que quer saber se o cu do marido cabe onde ela julga ser impossível caber. O cu do segurança serve de modelo.
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O homem que não tem falta de ar mostra-se deveras revoltado. Queira Deus que alguém lhe explique a razão das bombas, ainda tem um ataque de coração. E como que por contágio, provocará outros à sua volta.
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Um conhecido aborda-te com perguntas sem resposta: então, o que se passou? Passou-se, passa-se, que não tens resposta para esta dúvida insistente, recorrente, obsessiva, teimosa, persistente, patológica: por que correm debaixo de chuva as duas raparigas encharcadas?
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O melhor remédio está na rua, quando finalmente respiras fundo e caminhas breves minutos em silêncio. Olhas para o céu e acompanhas com o olhar o passo vagaroso das nuvens, escutas as gaivotas como se estivesses numa sala de concertos, a lua espreita-te com a ameaça de uma noite luminosa. Ainda trazes palpitações no peito, alfinetes espalhados pelo corpo, dúvidas.

2 comentários:

  1. Lamento pelo episódio que gerou estas dúvidas (que são muito boas).

    Saúde, Henrique.

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