Por que correm debaixo de chuva as duas raparigas
encharcadas?
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Dois corvos aos saltos nas imediações do Hospital. Um
crocita pelos que nascem, outro crocita pelos que morrem.
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Episódio de urgência: espera.
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Na sala de triagem, dão-te uma pulseira com a cor dos
girassóis de Van Gogh depois de ouvirem queixas, medirem tensão e temperatura. O
enfermeiro abana a cabeça e sorri ligeiramente, como quem nos desafia a tentar
perceber o que lhe vai no pensamento.
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Na ausência de lugares sentados, encostas-te à parede a
fingir que lês um livro. Felizmente o livro é bom. De fingir, passas mesmo a
lê-lo.
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Os corredores estão cheios de macas. Escutas os velhos em
surdina, lamentos, gemidos, gritos. Nada te incomoda tanto como a respiração
ofegante de quem espera.
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Comprimido debaixo da língua, análises à urina e ao
sangue, cateter, raio x. Os olhos da enfermeira.
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Por que correm debaixo de sol, aos pares, em fila,
sozinhos, os atletas domésticos? São uma espécie de arte urbana.
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Sentado a teu lado, um homem queixa-se de não ter falta
de ar. Não percebe por que lhe deram bombas. Ele tem líquido nos pulmões, não
tem falta de ar.
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Subitamente julgas ouvir o mar na sala de onde chegava o
choro das crianças. Será alucinação? Serão as mães?
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Momento zen: o segurança senta-se numa cadeira de rodas a
pedido da utente, que quer saber se o cu do marido cabe onde ela julga ser
impossível caber. O cu do segurança serve de modelo.
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O homem que não tem falta de ar mostra-se deveras
revoltado. Queira Deus que alguém lhe explique a razão das bombas, ainda tem um
ataque de coração. E como que por contágio, provocará outros à sua volta.
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Um conhecido aborda-te com perguntas sem resposta: então,
o que se passou? Passou-se, passa-se, que não tens resposta para esta dúvida
insistente, recorrente, obsessiva, teimosa, persistente, patológica: por que
correm debaixo de chuva as duas raparigas encharcadas?
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O melhor remédio está na rua, quando finalmente respiras
fundo e caminhas breves minutos em silêncio. Olhas para o céu e acompanhas com
o olhar o passo vagaroso das nuvens, escutas as gaivotas como se estivesses
numa sala de concertos, a lua espreita-te com a ameaça de uma noite luminosa.
Ainda trazes palpitações no peito, alfinetes espalhados pelo corpo, dúvidas.
2 comentários:
Lamento pelo episódio que gerou estas dúvidas (que são muito boas).
Saúde, Henrique.
Obrigado, Maria. Bom feriado.
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