segunda-feira, 7 de maio de 2018

O SENHOR TESTE


Dentre o caos de excitação e depressão, uma das boas notícias dos últimos dias, a contribuir para o equilíbrio possível de um país cada vez mais bipolar, é a reedição de O Senhor Teste (Relógio D’Água, Março de 2018), obra imortal de um tal Paul Valéry (n. 1871 – m. 1945), celebrado a seu tempo como o maior dos poetas franceses. As opiniões dividem-se. Por cá, a título de exemplo, Jorge de Sena chamou-lhe escritor «público a metro e finança». Aníbal Fernandes, o tradutor, lembra na introdução os 261 Cahiers vindos a lume. A desconfiança de Jorge de Sena contrasta com a admiração de Jorge Luis Borges, ainda que acautelada: «A sua poesia talvez está menos organizada para a imortalidade da sua prosa». Desta, destaca-se La Soirée avec monsieur Teste (1896), acerca da qual Borges sentencia: «Esse personagem (…) é talvez a invenção mais extraordinária das letras actuais». A personagem é o Senhor Teste, «herói tranquilo» segundo Borges, alter-ego segundo o tradutor Aníbal Fernandes, «personagem de fantasia» de acordo com o próprio Valéry, que no prefácio revela ter a criatura surgido numa era de «estranhos excessos de consciência de si». Também podemos especular sobre O Senhor Teste como o produto de um homem sem biografia, a partir de certa altura embrenhado em si mesmo, exclusivamente dedicado ao pensamento e à escrita, à relação possível entre ambas, porventura à impossibilidade de a segunda exprimir o primeiro. 
   O Senhor Teste, tal como a poesia de Valéry, é forma, jogo de espelhos, linguagem velada na sua aparente nudez. Enquanto tal, dispensa carne, ossos, veias, emoções, paixões, dispensa até a vontade, é coisa mental reflectindo-se a si mesma. Num belíssimo ensaio intitulado De Poe a Valéry, T. S. Eliot colocou bem a questão, ainda que centrando-a no contexto de uma análise acerca do interesse de alguns poetas franceses pela poesia de Poe. Diz-nos o autor de Four Quartets que mais do que o homem ou a poesia ela mesma, enquanto expressão das emoções experimentadas pelo homem, é a teoria da poesia aquilo que mais prende Valéry. E acrescenta: «À extrema autoconsciência de Valéry deve somar-se outro traço: o seu extremo cepticismo». Autoconsciência e cepticismo parecem ser as palavras-chave para um enquadramento de O Senhor Teste
   Do conjunto de textos que hoje compõem o enigma Teste, é no texto principal que damos com um encontro entre o narrador e o tal Sr., homem de «maneiras singulares», leitor de jornais, frequentador de teatros e bordéis, talvez pelos quarenta anos, casado, embora solitário, sem riso no rosto ou ar de infortúnio, com ódio à melancolia… vazio. Tudo o que nos é dito acerca deste homem é vago e incerto, por vezes até incoerente, porque nada é possível saber acerca dos homens. O movimento é introspectivo, o narrador volta-se para si mesmo e encontra o Senhor Teste. É no interior da sua condição de narrador que se processa a consciência de uma impossibilidade, a do contacto com o outro. O outro que está dentro de si é incognoscível, tal como incognoscíveis são todos os demais além de mim. 
   Vejamos como se lhe refere a mulher com quem está casado, na Carta da Senhora Émile Teste: «Vivemos muito à vontade, cada qual no seu absurdo, como peixes na água, e só por acidente a notarmos quanta estupidez a existência de uma pessoa razoável contém. Nunca pensamos que o que pensamos nos esconde o que somos» (p. 40). O Senhor Teste ensaia uma consciência da impossibilidade do conhecimento, tendendo para o tal cepticismo declarado por Eliot a propósito de Valéry. Personagem interior, como que põe em xeque a rainha da razão, a reflexão, arrastando para o vazio das impossibilidades o próprio pensamento, a metafísica, a lógica, a filosofia, enquanto capazes de conhecimento. Porque o pensamento é essencialmente linguagem, e esta a todo o momento trai os objectos da representação. Enquanto fruto do pensamento, O Senhor Teste surge para anular a possibilidade do próprio pensamento. Esta é a sua dimensão mais radicalmente paradoxal e labiríntica. Não admira o entusiasmo de Borges. 
   Num dos Extractos do Log-Book do Senhor Teste podemos ler, em resumo, a ironia desta personagem: «Não sei o que é a consciência de um tolo, mas a de um homem de espírito está cheia de tolices» (p. 56). Diria o Senhor Teste acerca de Paul Valéry? Diria Paul Valéry acerca de o Senhor Teste? Não importa sabê-lo. O exercício que nos propõe o texto é de outra ordem, não é um exercício de compreensão ou de percepção, é um exercício de aceitação do nada, da nulidade última à qual tudo se reduz quando ousamos transpor as fronteiras que garantem a lógica da coerência a um pensamento. Restam as dúvidas: «Quem sabe se a verdadeira «filosofia» de alguém é… comunicável?» / «Por que razão, no teatro mental, tu és Tu? Tu e não eu» (p. 101)? Perguntas às quais Ludwig Wittgenstein (n. 1889 - m. 1951), contemporâneo de Valéry, procurou responder. Filosoficamente. 

6 comentários:

rff disse...

Realmente estas últimas semanas foram pródigas em acontecimentos que fazem ressurgir aquele nosso espírito medieval do cantinho à beira-mar plantado onde todos conhecem todos e onde a promiscuidade, a hipocrisia e o compadrio nas relações estabelecidas é absoluta. E a coisa funciona assim, quer na política quer no desporto quer na própria sociedade. Vejamos então um caso prático para percebermos melhor a dimensão deste Belo embuste chamado Portugal.

Tivemos há pouco tempo um importante director dum canal televisivo que por mera coincidência é irmão ou meio-irmão (ou lá o que é..) do actual Primeiro-Ministro que num texto muito metódico e bem organizadinho tentou basicamente fazer-me passar por parvo. A mim e a todos que o leram. Lições de Seriedade por um desenvergonhado - poderia ter sido este o título - bem mais adaptado à realidade jornaleira e televisiva que se vive no país onde falta vergonha na cara a muita gente como diria a minha falecida avó.
Entre outros dislates, exultava pelo facto de alguns dos senhores jornalistas terem a integridade e o talento para lerem a totalidade do processo de quatro mil e tal páginas - processo esse objecto duma reportagem de longa duração apresentada pelo mesmo canal televisivo abrilhantada por vídeos dos interrogatórios que no essencial se limitou a seguir o fio condutor da muito competente (mas ainda assim excessivamente longa) investigação judicial que sustenta o dito processo. Esta exigência máxima para com o jornalismo, exemplificada por esse canal televisivo ao valorizar a leitura por parte dos jornalistas dos processos objecto de grandes reportagens desses mesmo jornalistas, eleva a comunicação social à portuguesa para patamares nunca antes vistos... Como consequência da tal reportagem televisiva, tivemos meio-mundo a dizer que sim senhor, que aquilo estava muito bem, que o Povo precisa que lhe ponham as coisas à frente dos olhos de forma assim digamos imediata tipo smartphone, caso contrário o povo não acredita. No tempo do Senhor de Santa Comba Dão a malta também comia vinho com pão ou pão com vinho. Bate tudo certo...Mas adiante!...
O tal senhor director garantiu também que a tal estação televisiva assumia total responsabilidade legal pelo crime acabado de cometer, o que deixou mais descansados os escritórios de advogados à volta do tal Marquês que por coincidência (também, lá está..) dá nome ao tal processo. Advogados esses que normalmente preparam as leis que regem o país. Para ver algum laivo de hipocrisia nessa declaração do tal senhor director é necessário lentes oculares daquelas muito modernas e caríssimas com cenas anti-isto e anti-aquilo que os mesmo advogados também devem ter...
Esqueceu-se o tal senhor director do tal canal televisivo de me aludir acerca do preço cobrado pelo mercenário que vendeu as gravações.... Esqueceu-se o tal senhor director do tal canal televisivo que disserta sobre seriedade de me explicar as diferenças entre pequena e grande corrupção e entre pequenas e grandes práticas criminais ou de como normalmente os ténues vestígios dessa mesma corrupção vão tendencialmente engordando...
Esqueceu-se o tal senhor director do tal canal televisivo de me elucidar acerca do seguinte: e se em vez do tio ricardo (al capone tuga que continua com vida de luxo e que teve toda a complacência da imprensa durante anos e anos..) fosse o tio balsemão? As imagens do interrogatório também seriam transmitidas na dita reportagem?...

rff disse...

Podia ficar por aqui, mas depois temos Sócrates que começou no PSD, teve os anos de "glória" no PS, e vai muito provavelmente - depois de escapar à prisão efectiva - acabar a criar um novo partido político do qual só tenho curiosidade em saber o nome...

E por último, temos e continuamos a ter o nosso Presidente dos afectos dos beijinhos e abracinhos que, imagine-se, é desejado por outros países derivado à empatia que cria à sua volta. Se fosse como nas transferências do futebol, vendíamos o martelo e assegurávamos o controlo do défice por dois ou três anos... O facto de nunca ter feito nada de relevante na vida, além dos beijinhos e dos abracinhos, não tem impacto no mercado da bolsa dos afectos e dos estados de graça prolongados..

E o que resta do portugal democrático? Bem... Foquemo-nos na qualidade dos vinhos, no Sol, na boa cerveja, nos excelentes petiscos, pois este ano não haverão Salvadores, nem Cristianos que nos safem..

P.S - não cabia tudo num único comentário, tive que partir em dois.. :)

hmbf disse...

Manhã de nojo e raiva. Ok!

RFF disse...

:)
Cuidemos da saudinha...
Abraço

João disse...

"Quartets" em vez dos "four qaurtets"

hmbf disse...

Obrigado.