Portugal defeca
ídolos semanalmente, concebe heróis ao mês, germina génios de ano a ano.
Resultado: olhamos para o passado e dificilmente se enxerga o que quer que
seja, a neblina da actualidade não permite, tudo obnubilado pela pressa, pela
urgência, pela necessidade de um sucesso descartável, o maior inimigo do saber.
Este prefere o ócio, como queria Stevenson, ou a preguiça, como advogava
Lafargue, na senda de uma herança deixada por gregos e esbanjada por romanos. Na
pior das hipóteses, exige paciência e menos boca do que ouvidos e olhos. Seria talvez
aconselhável, antes de mais, um elogio da lentidão. Ou do vagar, como o vislumbrou
Herberto Helder nos pescadores de uma Angola que foi a do seu tempo. Sob o
Signo dos Peixes é o título da memorável reportagem, agora coligida num volume
onde cabem igualmente outras fainas jornalísticas do poeta. Com um mínimo de literatura
e um máximo de observação, sem prescindir de pensar aquilo que se vê com a
inteligência de um humor distante.
em minúsculas —
crónicas e reportagens de Herberto Helder em Angola (Porto Editora, Abril de
2018) oferece-nos a possibilidade de um Herberto mais telúrico do que aquele
que certa imprensa hiperbólica foi incensando como se faz aos deuses. O grande
poeta que foi não carece de olimpos para continuar a sê-lo. Um rosto humano
cai-lhe melhor do que a máscara sagrada, ainda que sejamos tentados, aqui e
acolá, a admitir-lhe a veleidade, por nele entendermos uma nostalgia do
sagrado, da origem, do imemorial, da ancestralidade, que deve mais a certo paganismo
panteísta do que a estranhas noções de santidade. Corremos o risco,
porém, de fazermos com ele o que ele viu fazerem com Hemingway: «Não somos tão
ingénuos que nos irritemos com a reedição da história: os abutres comem
alegremente o cadáver» (p. 52). Os abutres somos nós, os leitores, é a Porto
Editora, que editou, é Daniel Oliveira, o filho, é Diana Pimentel e Raquel Gonçalves,
que investigaram, digitalizaram, transcreveram, reviram e seleccionaram o maná.
A dúvida é: não
seria uma injustiça para os abutres manter na penumbra estas crónicas, estas reportagens,
estes artigos, estas entrevistas? Não merecem os abutres viver até eles
próprios se tornarem cadáver? Pela parte que me toca, dou descanso à
consciência. Foram bem empregues os 17,70 €. Desde logo pelas gargalhadas
arrancadas com entrevistas a Carlos do Carmo e Nelson Ned, Um homem com um
metro de altura, mas também com Um passeio no campo onde o Benfica deu 3 ao
Sporting ou com essa pérola simplesmente intitulada Seca. Depois, há os elogios
a Agustina e a Manuel de Castro e à música pop (p. 97): «Para se estar bem em
qualquer parte essencial, sobretudo quando se é jovem, é necessário ser
espontâneo, imaginativo, revulsivo. Ser malcomportado. Ser contra todas as
gramáticas, a favor da vitalidade. É então que o corpo fala ao corpo que
compreende» (p. 100). Era assim na Luanda de 1971, é assim no Portugal de 2018.
E sublinhamos: «Ser contra todas as gramáticas, a favor da vitalidade». Mas há
mais, muito mais a justificar a exumação destes textos. Da crítica social, de
tendências, e política, a peças universais, sem tempo: Aprender ou Não, Museu
do Café: «A poesia não habita apenas os livros de poemas, nem se abre só nas
intenções» (p. 152).
Dirão uns que
este livro é para fazer render o peixe. Terão as suas razões e a sua razão
ninguém a nega. Mas se tudo quanto se faz para render um peixe oferecesse tanto
ao leitor como este em minúsculas, estaria o mundo melhor e as livrarias
mais aliviadas. Dirão outros que Herberto Helder deve principalmente ser
lembrado como um “mago da palavra”, referindo-se à sua poesia. Pois bem, se Os
Passos em Volta e Photomaton & Vox não causaram mossa na poesia,
consideremos em absoluto a expressão “mago da palavra”. Em poema, em prosa,
Herberto Helder é um dos nossos melhores escritores do séc. XX. Com altos, com
baixos, com nem tudo genial (isso é que era bom!), um escritor, um homem que
lidou com palavras e delas fez a matéria-prima de um poema contínuo que
agradará mais numas curvas do que noutras. Dizê-lo é meio caminho andado para
que o consigamos encarar de frente, como devem ser encarados os homens, que são
da terra, que não são monstros, os homens que escrevem, deste mundo humano, precário,
fragmentário, duvidoso, tão belo quão terrível, ainda assim emocionante,
vivível até à exaustão de ser vivido.
O que não falta aqui pelo "reino" é «magos da palavra» e «olhos de editor». Vale-nos que "isto" não passa de um cochicho.
ResponderEliminarA dançar o solidó batem mais os corações!
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