Os números não enganam, o interesse recente pela poesia
contemporânea brasileira trouxe-nos livros de Angélica Freitas (Pelotas,
1973), Fabiano Calixto (Garanhuns, 1973), Carla Diacov (São Bernardo
do Campo, 1975), Ricardo Domeneck (Bebedouro, 1977), Marília Garcia (Rio
de Janeiro, 1979), Adelaide Ivánova (Recife, 1982), Diego Moraes (Manaus,
1982), Nina Rizzi (Campinas, 1983), Júlia de Carvalho Hansen (São
Paulo, 1984), Luca Argel (Rio de Janeiro, 1988)… A este inventário acelerado
devemos ainda acrescentar as antologias “Naquela Língua — Cem Poemas e Alguns Mais”, organizada por Francisco José Viegas, e “É Agora Como Nunca”, da
responsabilidade de Adriana Calcanhoto. Mais abrangente no tempo e restrita no
tema, temos a “Antologia da Poesia Erótica Brasileira”, de Eliane Robert
Moraes. Sintomático também que tenham sido essencialmente pequenas editoras,
tais como a Douda Correria e a Mariposa Azual, a recuperarem este interesse
pela poesia brasileira, certamente mais movidas pelas relações de aparente
proximidade proporcionadas pelas redes sociais do que por qualquer interesse
comercial. De resto, está por verificar se à difusão de novos poetas brasileiros
entre nós corresponde um real interesse dos leitores portugueses. O que não é
necessário verificar é a variedade de registos que esta poesia nos oferece,
comprovável nos três livros que estimulam este texto.
Ninguém
vai poder dizer que eu não disse – Vol. I (Douda Correria, Setembro de 2016),
de Carla Diacov, subtrai o sentido ao ímpeto de dizer. Fragmentários, os poemas
surgem-nos cifrados pela urgência do que se diz. As maiúsculas irrompem da
prosa como gritos, sugerindo automatismos, instantes de fúria, histeria, que
mandam às favas o lirismo da poética amorosa: «quero que você se foda. diferente
do mundo . também /quero que o mundo se foda. o mundo: PIADA DE BOM / GOSTO. inda
esses idiomas de infrutífera búfala: QUERO / QUE VOCÊ FODA TODO O TEU SORRISO
CAVALAR / ROÇANDO A MINHA PALMA o mundo que se foda sem / você por umas horas:
UMA CADEIRA SOBRE A OUTRA / UMA CADEIRA SOBRE A OUTRA UMA CADEIRA / SOBRE A
OUTRA SOBRE A MESA SOBRE A FESTA DE / DESANIVERSÁRIO: assim o mundo se fodendo
todo na / espera de uma colisão que não que nunca que cão que merda / que hora
e que buraco: QUEM É VOCÊ QUE TANTO SE / FODE E NUNCA DEBULHA A RESPEITO?»
(s/p). Talvez faça sentido associar a este dizer a noção de catarse, entendida
não apenas como “purificação”, mas como a própria dramatização de um sentimento
expresso pela palavra, ou seja, libertação da palavra aprisionada no espaço
silencioso do recalcamento. Carla Diacov disse, e ninguém vai poder dizer o
contrário.
Já Ricardo Domeneck, de quem havíamos lido "Medir com as própriasmãos a febre" (Mariposa Azual, Outubro de 2015), remete-nos para um
território que lembra o "Manual de Civilidade para Meninas", da autoria de Pierre
Louÿs (n. 1870 – m. 1925). Só que no Manual para Melodrama (Douda
Correria, Março de 2017), dedicado a Adelaide Ivánova, rosto reproduzido na
capa, a civilidade foi substituída por «técnicas de sobrevivência ao abandono»
(o «método medeico», inspirado na figura mitológica de Medeia, o «método
didoico», a partir de Dido, rainha de Cartago) e outras sugestões de utilidade
inquestionável para quem tenha sido traído, abandonado, esquecido, preterido…
Com estes aforismos de inclinação irónica, Domeneck coloca a mulher num
patamar de superioridade ante a figura opressora do amante desleal. A vingança
é um prato que pode e deve ser servido com subtileza. Tanto este livro como o
de Carla Diacov podem colocar-nos perante um tipo de texto que não identificamos
de imediato como poesia. O primeiro desafio é formal. Aforismos? Fragmentos?
Axiomas? O que os torna poéticos, mesmo não o sendo intencionalmente, é o uso
da linguagem, o ímpeto de dizer anterior à precisão de sentido: «Deste mesmo peito será você a expectorada» (s/p).
Não será também assim com Um útero é do tamanho de um punho (Douda Correria,
Setembro de 2017), de Angélica Freitas? A condição feminina, transversal a estes
três livros, é tanto aqui a da mulher-cão, de Paula Rego, como a da mulher
social e culturalmente espartilhada num universo patriarcal, que facilmente
identificamos com a poesia de Adília Lopes. O recurso a canções populares e a
formatos clássicos surge-nos, precisamente, como modo de questionamento dessa tradição
cultural, aqui contestada, subvertida, rejeitada pela figura da «mulher limpa»
que deseja, que peca, que deita para o lixo as imagens de pureza artificial disseminadas
pelos media e cultivadas num figurino de beleza que reduz a mulher à condição
de servente: «eu me sinto tão mal / eu vou lhe dizer eu me sinto tão mal /
engordei vinte quilos depois que voltei do hospital / quebrei o pé / eu vou lhe
contar eu quebrei o pé / e não pude mais correr eu corria 10 km/dia / aí um dia
minha mãe falou: regina / regina você prexcisa fazer um regime você está enorme
/ você fica aí na cama comendo biscoito / e usando essa roupa horrível que
aprece um saco de batatas / um saco de batatas com um furo pra cabeça / também
não precisava óbvio que fiquei magoada / primeiro fiquei muito magoada depois
pensei: ela tem razão / daí eu comecei regime porque me sentia mal / eu me
sinto mal eu me sinto tão mal / troquei os biscoitos por brócolis queijo
cottage e aipo / coragem eu não tenho de fazer uma lipo / eu me sinto tão mal
por tudo que comi esse tempo todo / tão mal e tem tanta gente passando fome no
mundo» (s/p). In mulher regime. A identidade de género, também retratada nestes
poemas sob a perspectiva de condição feminina, parece-nos especialmente pertinente
no momento que o Brasil atravessa, momento de retrocesso civilizacional plasmado
nas afirmações de Marcela Temer, mulher do presidente Michel Temer, acerca do
lugar da mulher na sociedade brasileira. Ecoam nestes poemas sinais de um tempo
detergente, alicerçado numa hipocrisia consentida e promovida. A linguagem
banal e quotidiana aqui plasmada não é apenas um reflexo desse tempo, é um modo
de o retratar revolvendo-lhe as entranhas, dissecando-o, aproveitando
ressonâncias que estilhacem a autoridade da hipocrisia. Chamemos-lhe ironia,
chamemos-lhe cinismo, será sempre uma poética da desconstrução do discurso vigente.
Muito bom, Henrique. para não variar.
ResponderEliminargracias.
ResponderEliminar