Vem ao caso citar o instrutivo Manual de Civilidade para Meninas, da autoria de Pierre Louÿs. Múltiplos, inesperados e variados factores o tornam congruente. Não apenas recentes problemáticas levantadas em torno do (ab)uso de certos órgãos em práticas sexuais supostamente doentias, mas também por ser cada vez mais evidente estarmos a caminho de uma cruzada moralista, com objectivos ainda algo obscuros, que pretende impor aos homens e às mulheres deste mundo comportamentos específicos com base em extrapolações do que sejam ou devam ser a higiene física e moral de uma determinada sociedade. Não me refiro apenas ao repúdio que a alguns causa o uso do ânus para outras actividades que não a de obrar, mas também à péssima relação, cada vez mais evidente, que certos portugueses mantêm com o riso e com a anedota. O Portugal do «respeitinho é muito bonito», do «come e cala», não morreu. Se estava morto e enterrado, temo que, qual Lázaro, ressuscite em guisados de puritanismo bacoco e indigesto. Laudas às Bellucci deste mundo quando, sem falsos pudores, confessam assim os seus mais íntimos segredos: «O desejo secreto de qualquer mulher é fazer passar-se por uma prostituta». No que à actriz diz respeito, pois confesso eu que o meu mais secreto desejo é fazer-me passar por seu cliente. Não passando tal desejo de um sonho improvável, abalancemo-nos nas leituras do desejo. Pierre Louÿs, nascido na Bélgica, a 10 de Dezembro de 1870, mudou-se cedo para a capital de todos os vícios, Paris, onde passou a maior parte da sua vida. Amigo de André Gide e de Oscar Wilde, dedicou-se à escrita erótica de cariz heterossexual. Fundou a revista La Conque, tendo aí publicado os seus primeiros poemas, por vezes em prosa, como aconteceu em Les Chansons de Bilitis, versando temas relacionados com o lesbianismo. Deveras empenhado no estudo, quando não na própria reprodução, do espírito helénico - o que, de resto, foi apanágio de todo o romantismo precedente -, Louÿs deu à estampa, em 1896, o seu primeiro romance, justamente intitulado Aphrodite (moeurs antiques), sobre a vida das cortesãs na antiga Alexandria. Autor de obra assaz prolífera, dividiu-se pela poesia, mais ou menos obscena, pela ficção e pelo ensaio, tendo ainda vasta produção epistolográfica e sendo autor de várias traduções. Morreu em 1925, de sífilis, cego, endividado, em solidão, ou seja, sem saúde mas cheio de vida. O Manual de Civilidade para Meninas (Manuel de civilité pour les petites filles, à l’usage des maisons d’éducation) foi publicado postumamente, em 1926, tendo aparecido pela primeira vez na língua portuguesa, que eu saiba, na colecção contramargem, da & etc. Em 1988, a Fenda publicou a tradução de Júlio Henriques, reeditada pelo menos duas vezes (1995 e 2005). Não será difícil encontrar a última edição, com belas ilustrações de Pedro Proença e um prefácio do tradutor, que define este curioso volume como sendo uma «hilariante caricatura dos livros de moral para crianças». Caricatura, diz bem, conquanto o que haja de caricaturável na vida seja igualmente a vida sem os véus da hipocrisia e do falso puritanismo. O glossário, a abrir, não deixa dúvidas quanto aos intentos deste manual: «Considerámos inútil explicar palavras como cona, racha, grelo, rata, pissa, pixota, caralho, colhões, esporrar-se (verbo), esporra (substantivo), entesar, masturbar, chupar, foder, encaralhar, metê-lo, enconar, enrabar, descarregar, pissa postiça, fufa, sessenta e nove, minete, puta, bordel. Tais palavras são familiares a todas as meninas» (p. 14). No miolo, os conselhos distribuem-se pelos comportamentos a adoptar nas mais variadas situações quotidianas (dos comportamentos à mesa, passando pela confissão, até à vida no campo), havendo ainda lugar para a exposição de alguns deveres e sugestões no que respeita aos dizeres mais apropriados consoante os interlocutores. Por vezes irónico e humorístico, outras vezes burlesco, quase sempre satírico, Pierre Louÿs saberia do que falava quando, em tom aforístico, declarava: «O mais bonito presente que uma menina pode dar é uma virgindade. Como de frente só pode ser dada uma vez, dai cem vezes a de trás, e assim fareis cem cortesias» (p. 33). O que impressiona nestes ditos é a sua estranha actualidade, à luz da tão dificilmente reciclável hipocrisia humana: «Admirai a bondade de Deus, que deu a todas as meninas uma cona para nelas se enterrarem todas as pissas do mundo, e que, para vossos prazeres variegar, vos permite substituir a pissa pela língua, a língua pelo dedo, a cona pelo cu, e o cu, ainda, pela boca» (p. 73). Pelo que, de todos os preceitos, conselhos, sugestões, regras e normas de civilidade aqui expostos, aquele que se me apresenta como sendo, actualmente, o mais pertinente só pode ser este: «Não digais: «Vi-a foder pelos dois lados.» Dizei: «É uma ecléctica»» (p. 102).
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