sexta-feira, 29 de julho de 2022

UM ANALECTO

 

Nunca percebi porque razão as nossas histórias da filosofia começam invariavelmente com os gregos. Os homens não pensavam antes dos pré-socráticos? Mais grave é a quase completa ausência de Confúcio no tabuleiro desta partida. O argentino Jorge Luis Borges falava com entusiasmo de uma história da filosofia que começava com chineses e indianos, da mesma maneira que entusiasticamente se empenhou em desfazer a dicotomia Ocidente/Oriente. Onde começa um e acaba o outro? Não serão ambos resultado de influências mútuas durante séculos de contactos, viagens, batalhas, disputas territoriais? Entre os autores que conheço, nenhum outro supera Eduardo Galeano na desmistificação de uma suposta superioridade cultural do ocidente. Galeano também é sul-americano, do Uruguai, um continente cuja história está profunda e tragicamente estigmatizada pelo colonialismo ocidental. Há culturas superiores, dizia, escrevia e repetia há tempos um desses parvalhões com palco permanente na imprensa e no entretenimento (não são ambos cada vez mais a mesma coisa?). Fará ele ideia do que nos legaram os chineses, do que com eles aprendemos e do que neles copiámos? Reconhecerá a relevância dos árabes em inúmeras matérias? Talvez não, se até o filho de uma estimável poeta afirmou que os árabes não deram nada de valoroso à humanidade. Acho lamentável que os pais nada ensinem aos filhos. Foi o que sucedeu com este, pobre coitado, a mãe andava ocupada a escrever poemas e o rapaz ficou assim. A humanidade, na sua diversidade cultural, mistura-se, influencia-se, contamina-se, sendo que cada um de nós é resultado de inúmeros encontros e cruzamentos. Portugal há-de ser das regiões neste mundo com mais misturada genética. O fim de uma península no termo de um continente. Paravam aqui os povos e, não havendo nada diante, por aqui ficavam para mal dos seus pecados. Alguns terão voltado para trás. Não podemos criticá-los. As coisas são o que são e são muita coisa diferente ao mesmo tempo. Vem isto a propósito de quê? De Confúcio, pois claro. E de um analecto no qual tenho pensado muito ultimamente. Diz assim:
 
Chi-lu perguntou como deviam ser servidos os espíritos dos mortos e dos deuses. O Mestre disse: «Tu nem sequer és capaz de servir o homem. Como podes servir os espíritos?»
   «Posso perguntar sobre a morte?»
   «Tu nem sequer compreendes a vida. Como podes compreender a morte?»


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