quarta-feira, 8 de abril de 2015

ELOGIO DAS GREGUERÍAS


A edição data de 1998, mas a etiqueta da FNAC é de 16/04/07. Deve ter sido por essa altura que li as Greguerías, selecção levada a cabo por Jorge Silva Melo (uma das poucas figuras públicas decentes deste país). No prefácio, explica-se que foram sendo publicadas, entre 1910 e 1963, em opúsculos e jornais. Citação sobre citação, diz-se ainda: «nasceu naquele dia de cepticismo e cansaço em que peguei em todos os ingredientes do meu laboratório, frasco a frasco, os misturei, e do seu precipitado, depuração e dissolução, surgiu a greguería». Sublinho, sublinhei: naquele dia de cepticismo e de cansaço. Ramón Gómez de la Serna (n. 1888 – m. 1963) é autor de uma vasta e diversificada obra, a qual conflui à laia de síntese nesta algaraviada onde o aforismo encontra o fragmento, este se cruza com o epigrama e da ménage surgem micronarrativas ou, se preferirem, brevíssimos poemas de uma linha só: «A gaivota rema ao voar». Quando é aforístico soa assim: «A felicidade consiste em ser-se um desgraçado que se sente feliz». Quando é epigramático diz: «Há ventiladores que se sentem bispos e só fazem é dar bênçãos em redor». Pode efabular: «A mosca pousa no que está escrito, lê e parte como se desprezasse o que leu. É o mais exigente crítico literário». Ou pode narrar: «Tinha uma memória tão má que se esqueceu que tinha má memória e começou a lembrar-se de tudo». Por vezes, surgem diálogos: «— Há peixes no sol? / — Há. Fritos». Noutras ocasiões, a poesia impõe-se: «Na gruta boceja a montanha». Mas mesmo fragmentário, revela mais do que muitos tratados: «A vida é dizer-se «adeus» a um espelho». As Greguerías não são apenas um compêndio de ditos espirituosos, de chalaças e de trocadilhos, de brincadeiras com as palavras ao acaso dos humores. Ramón tentou defini-las:

   Mas o que são as Greguerías?
   Frases lapidares? A greguería não sai de debaixo de nenhuma lápide mortuária. Adágios? Refrões? (sic) Nã, nã. Nem uns nem outros: nem adágios, que são demasiado tristes e elegíacos; nem refrões (sic) que são coisa infecciosa.
   Nela não deve haver sentimentalismo rabilargo nem pirismo rabicurto, nem descrição. Longe de serem calinadas ou lugares comuns.
   Têm qualquer coisa de tropo, porque no tropo as palavras podem ser ditas em sentido diferente do natural — mas atenção! não seja o tropo flor de trapo — e em quarto ou quinto apelido leva o de Sinédoque, porque se permite nomear a parte pelo todo, e por sexto ou sétimo apelido o de Metonímia, porque pode nomear uma coisa com o nome de outra.
   São aforismos?
   O aforístico é um género — já se disse — que não encolhe porque a sua brevidade o não permite.
   Não. Também não é aforística a greguería; o aforismo é enfático e opinante. Não sou um aforista.
   Fica-se então pela metáfora?
   O material e o imaterial podem ser objecto de metáfora.
   Todas as palavras e frases morrem na sua origem correcta e literal, e só atingem a glória quando passam a metáforas, porque as metáforas as tornam abstractas e embalsamadas.
   A metáfora multiplica o mundo, não ligando à retórica que proíbe enlaçar as coisas só porque é importante para o fazer —
   Humor + metáfora = greguería.


A fórmula não encerra a natureza híbrida e dúbia dos ditos, nem sempre humorísticos — «As andorinhas bordam no céu dos seus voos o manto que pensam oferecer à Virgem» —, nem sempre metafóricos — ««Idem» é uma palavra de poupança». As greguerías erotizam o pensamento. Não o digo influenciado por aquelas em que o elemento erótico surge explicitamente — «Decote grande: perfume sem tampa». Digo-o no sentido de haver nelas ideias capazes de seduzir pelo tom, pela pose, pelo estilo em que se apresentam. São a dimensão lasciva da linguagem. E essa capacidade é um bem escasso, rareia cada vez mais num mundo de ideias feitas conformado com a banalidade dos dias. 

5 comentários:

  1. Gostei de 'conhecer' este livro. Vou já procurá-lo.

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  2. É magnífico o Ramón. "Vive" sempre aqui ao lado.

    (Há dias, descobri que fez parte da tertúlia de Borges quando este viveu, ainda jovem, por terras de Espanha).

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  3. A ler:

    http://www.ramongomezdelaserna.net/bR3.RyBnovedades%28C.Garcia%29.htm

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  4. Bolas para mim, nunca tinha visto tal palavra e nem sabia que existisse. Será que já a utilizei algumíssima vez? É que não faço ideia. Acredito na negativa. Ando ainda perdida no embaraço metafórico, desgregueriada de todo.
    Decorre que desconheço o autor e sua qualidade

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