sábado, 25 de abril de 2015

MINISTÓRIAS DE DALTON TREVISAN

Perto dos 90 anos de idade, o Prémio Camões Dalton Trevisan (n. 1925) mantém uma estimável distância do folclore literário produzido pela espectacularidade de festivais que entusiasmam mais académicos solitários e carentes do que público leitor em geral. Por cá, a despeito do Prémio e do esforço editorial da Relógio D’Água, guarda uma aura de escritor de culto dificilmente ultrapassável num autor cuja obra é praticamente toda ela à base de contos. É mais que óbvio o desdém que atinge o conto em terras lusas, desdém esse cuja intensidade é inversamente proporcional ao tamanho da história. Ou seja: quanto mais curto o conto, maior o desdém. Houve um tempo, não muito distante, em que acreditei ser possível combater o preconceito. Falou-se de micronarrativa como nunca antes se tinha falado, alguns críticos dedicaram-lhe atenção, apareceram livros, mas depois acabou tudo por se revelar tesão de mijo para entreter alguns oportunistas e iludir “mercados”. São as tradicionais águas de bacalhau à portuguesa. Investimento sério, persistência, dedicação, sobretudo interesse pelo género, é coisa que não se descobre senão quando, por aqui e por acolá, surgem uns livritos de autores sobre os quais recai sempre a promessa de um futuro brilhante no mundo das letras, mas que acabam, invariavelmente, por desaparecer entre a multidão de génios que ocupa as páginas da imprensa especializada. Entre dois romances, lá estão os contos a servir de interlúdio. De resto, permanecemos igualmente reféns de uma palerma confusão há muito instalada entre miniconto e poema, confusão tal que pende quase sempre para chamar poema ao que, na realidade, não passa de conto e apelidar de poeta, ó sacrilégio, aquele que mais não faz do que orientar pequenas histórias. Olhássemos para isto com olhos de ver e constataríamos que, para aí a partir da década de 1990, de país de poetas Portugal transformou-se em país de contistas. Não teria mal algum, seria mais honesto (se é que faz sentido falar de honestidade nestes domínios) e, decididamente, mais enriquecedor de um ponto de vista cultural. Poetas há muitos, a poesia é que rareia. Já contistas como Trevisan são escassos, devem ser lidos, partilhados, discutidos, falados, porque neles encontramos um domínio da língua que sabota tanto as técnicas narrativas comuns como os improvisos da linguagem poética. Ah, é? (1.ª edição, 1994) e 234 (1.ª edição, 1997) são dois bons exemplos de como a ministória (o termo aparece no frontispício das duas edições que possuo, em ambos os casos a 3.ª, em ambos os casos datadas de 2013, em ambos os casos editados pela Record) pode ser tão profunda como um romance e tão ou mais intensa do que um poema, sendo para isso necessário apenas o rigor e a sabedoria que a prática da língua oferece. Algures entre as balizas do sexo e da morte, Trevisan joga todos os seus recursos em sínteses que retratam a insuportável decadência das relações conjugais, traições, desamparo, cenas de ciúme, a solidão na velhice, o abandono na pobreza, retratos dessa vida que temos por certo ser nossa porque se exerce entre dois misteriosos momentos: o da concepção e o da morte. Um dos aspectos mais curiosos destas ministórias é a presença regular do travessão, o qual oferece voz a quem geralmente a não tem, por certo figuras tanto da imaginação como da observação quotidiana, personagens que fazem o leitor sentir haver carne e osso por detrás da literatura:

— Trabalho o dia inteiro pensando nele. Entro em casa, o carinha com duas pedras na mão. Me cobra, reclama, agride, chora. Exige o brinquedo mais caro. Ai, vontade de fugir, nunca mais voltar.
— Ah, é? Por que não pensou antes? Bem lhe disse: comece com um vasinho de violeta. Uma coleção de bichos de vidro. Depois um peixe vermelho no aquário. Em seguida um gatinho branco. Filho? Só no fim da iniciação.

(Ah, é?, p. 26)

O que resgata este diálogo da banalidade quotidiana? Podíamos ouvi-lo na fila de um supermercado, enquanto aguardamos o autocarro, nas urgências de um Hospital. As pessoas falam destas coisas, basta estar atento para escutá-las. Mas o que há nestes diálogos de veemente é a capacidade de fotografar o invisível. Neste caso, a saturação de uma mulher encalhada na vida doméstica. Ela não se queixa apenas do filho, queixa-se de não ser livre, de não poder ser ela. E o conselho que lhe é dado sublinha os absurdos da existência. Raramente reduzidos ao puro nonsense, estes contos não lhe fogem totalmente. Porque o nonsense está na própria vida das personagens, não é um mero exercício mental que corrompe as leis da lógica. Faz parte da existência, mistura-se com a vida quotidiana. Isso mesmo gera uma estranha ruptura na monotonia e no tédio com que encaramos o dia-a-dia, é como se o absurdo arbitrasse o tal jogo que se processa entre as balizas do sexo e da morte:

Primeiro o anúncio que se teu pai foi bebedor social você não escapa dos alcoólicos anónimos.
Se acaso em menino você andou de bicicleta será sempre um ejaculador precoce.
Agora essa que o maioral da igreja é uma rainha no baile de travestis.
Toda a culpa? Do teu anjo da guarda. Só voa, o desgracido, com pico na veia.

(234, p. 108)

No volume Ah, é? encontramos também algumas falsificações, para usar termo caro ao argentino Marco Denevi, com referências a Rilke, Modigliani, Homero, a personagens bíblicas, aos cínicos: «Aos quarenta anos você pede menos que Diógenes, nem reclama da sombra de Alexandre na soleira do tonel» (p. 8). A tendência aforística atravessa os dois volumes, assim como o sentido poético da frase que ilustra o momento à maneira do haiku japonês, repetindo-se os elementos naturais que conferem beleza a um panorama geral muito menos atractivo:

Solta do pessegueiro a folha seca volteia sem cair no chão — um pardal.
(Ah, é?, p. 15)

Bolem na vidraça uns dedos tiritantes de frio — a chuva.
(Ah, é?, p. 15)

Agulhas brancas ligeirinhas costuram o ar. Chove.
(234, p. 12)

As folhas da laranjeira batem asas numa gritaria. Pardais.
(234, p. 123)


O panorama geral trevisaniano, como já o temos referido, é o do tempo na cidade, na cidade que o acolheu e que por ele foi escolhida como palco para derivas literárias que recriam guerras conjugais, crimes passionais, paixões humanas, encontros e desencontros no contexto de uma sociedade em ininterrupta ebulição. Mas seria talvez incorrecto delimitá-lo a essas fronteiras, pois, na realidade, o seu verdadeiro palco é o tal terreno de jogo balizado pelo sexo e pela morte, um terreno muito mais amplo e universal ao qual atribuímos nomes apenas para evitarmos sentir-nos completamente desorientados nos labirintos domésticos em que nos trazemos presos.

5 comentários:

  1. Algures entre as balizas do sexo e da morte, Trevisan joga todos os seus recursos em sínteses que retratam a insuportável decadência das relações conjugais, traições, desamparo, cenas de ciúme, a solidão na velhice, o abandono na pobreza, retratos dessa vida que temos por certo ser nossa porque se exerce entre dois misteriosos momentos: o da concepção e o da morte.

    Ah, agora percebo porque detestei ler O Vampiro de Curitiba. Trevisan tem o dom de escrever sobre tudo o que não me interessa. Ele é apenas mais um banal cronista do quotidiano, com os temazinhos do costume das relações humanas. Já reparou que está a descrever uma telenovela? Relações conjugais, traições, cenas de ciúmes - cenas de ciúmes! Meu Deus, cenas de ciúmes!

    O que resgata este diálogo da banalidade quotidiana?

    Eu diria que nada. Se o que ele escreve eu posso ouvir na bicha do supermercado, então não deve ser grande literatura. Eu não tenho problemas com contos, adoro Borges e recentemente descobri um genial contista chamado Guy Davenport. Mas tenho problemas com pesos-plumas intelectuais como Trevisan que pôem o trabalho de linguagem de parte em nome da crença de que falar-se sobre a condição humana constitui o principal da literatura. Eu sobrevivo sem a tematicazinha da condição humana, mas não vivo sem grande prosa.

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  2. "um banal cronista do quotidiano"

    Ok, estamos falados. Você deve ter um quotidiano lixado.

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  3. Olá,

    Na verdade o meu dia-a-dia não tem qualquer interesse. Mas sei distinguir uma narrativa criativa de um mero amontoada de histórias pescadas do Correio da Manhã.

    Insisto que o que descreveu não passa de uma telenovela. Prove-me que estou errado. Ou então explique-me porque me devo interessar por esses temas comezinhos.

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  4. Comezinha é a vida, toda ela. E a literatura não vive de temas, tanto quanto vive do modo como os trata. Os temas são sempre os mesmos, os da vida comezinha. Ou há alguma coisa além da vida que vivemos comezinhamente? Quais são os temas não comezinhos que o encantam? Por exemplo, os temas aqui referidos são os temas da tragédia grega. Questões comezinhas: sexo, morte, violência, crime, dilemas morais... Há temas para lá disto? O tema, creio, nem importa. A Bíblia é toda ela comezinha, desde esses tempos remotos que andamos a escrever sobre as mesmas coisas. Pais que violam filhas, mães que traem pais, tipos que andam sobre as águas, mistérios do além, a vida vidinha que o O'Neill meteu em poesia e o Trevisan mete, do meu ponto de vista genialmente, em "ministória".

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  5. Comezinha é a vida, toda ela. E a literatura não vive de temas, tanto quanto vive do modo como os trata.

    Exactamente, e a prosa de Trevisan trata-os de forma bastante banal. A prosa dele é quase jornalística na sua construção. Não tem verve nenhum, é seca, chupada, anémica e anódina.

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