Perto dos 90 anos de idade, o Prémio Camões Dalton Trevisan (n.
1925) mantém uma estimável distância do folclore literário produzido pela
espectacularidade de festivais que entusiasmam mais académicos solitários e
carentes do que público leitor em geral. Por cá, a despeito do Prémio e do
esforço editorial da Relógio D’Água, guarda uma aura de escritor de culto
dificilmente ultrapassável num autor cuja obra é praticamente toda ela à base
de contos. É mais que óbvio o desdém que atinge o conto em terras lusas, desdém
esse cuja intensidade é inversamente proporcional ao tamanho da história. Ou
seja: quanto mais curto o conto, maior o desdém. Houve um tempo, não muito
distante, em que acreditei ser possível combater o preconceito. Falou-se de
micronarrativa como nunca antes se tinha falado, alguns críticos dedicaram-lhe
atenção, apareceram livros, mas depois acabou tudo por se revelar tesão de mijo
para entreter alguns oportunistas e iludir “mercados”. São as tradicionais águas
de bacalhau à portuguesa. Investimento sério, persistência, dedicação,
sobretudo interesse pelo género, é coisa que não se
descobre senão quando, por aqui e por acolá, surgem uns livritos de
autores sobre os quais recai sempre a promessa de um futuro brilhante no mundo
das letras, mas que acabam, invariavelmente, por desaparecer entre a multidão de génios que ocupa as páginas da imprensa especializada. Entre dois romances, lá estão os contos a servir de interlúdio. De resto,
permanecemos igualmente reféns de uma palerma confusão há muito instalada entre
miniconto e poema, confusão tal que pende quase sempre para chamar poema ao
que, na realidade, não passa de conto e apelidar de poeta, ó sacrilégio, aquele
que mais não faz do que orientar pequenas histórias. Olhássemos para isto com
olhos de ver e constataríamos que, para aí a partir da década de 1990, de país
de poetas Portugal transformou-se em país de contistas. Não teria mal algum,
seria mais honesto (se é que faz sentido falar de honestidade nestes domínios)
e, decididamente, mais enriquecedor de um ponto de vista cultural. Poetas há
muitos, a poesia é que rareia. Já contistas como Trevisan são escassos, devem
ser lidos, partilhados, discutidos, falados, porque neles encontramos um domínio
da língua que sabota tanto as técnicas narrativas comuns como os improvisos da
linguagem poética. Ah, é? (1.ª edição, 1994) e 234 (1.ª edição, 1997) são dois bons
exemplos de como a ministória (o termo aparece no frontispício das duas edições
que possuo, em ambos os casos a 3.ª, em ambos os casos datadas de 2013, em ambos os casos editados pela Record) pode ser
tão profunda como um romance e tão ou mais intensa do que um poema, sendo para
isso necessário apenas o rigor e a sabedoria que a prática da língua oferece. Algures
entre as balizas do sexo e da morte, Trevisan joga todos os seus recursos em sínteses
que retratam a insuportável decadência das relações conjugais, traições, desamparo, cenas
de ciúme, a solidão na velhice, o abandono na pobreza, retratos dessa vida que
temos por certo ser nossa porque se exerce entre dois misteriosos
momentos: o da concepção e o da morte. Um dos aspectos mais curiosos destas
ministórias é a presença regular do travessão, o qual oferece voz a quem
geralmente a não tem, por certo figuras tanto da imaginação como da observação
quotidiana, personagens que fazem o leitor sentir haver carne e osso por detrás
da literatura:
— Trabalho o dia inteiro pensando nele. Entro em casa, o
carinha com duas pedras na mão. Me cobra, reclama, agride, chora. Exige o
brinquedo mais caro. Ai, vontade de fugir, nunca mais voltar.
— Ah, é? Por que não pensou antes? Bem lhe disse: comece com
um vasinho de violeta. Uma coleção de bichos de vidro. Depois um peixe vermelho
no aquário. Em seguida um gatinho branco. Filho? Só no fim da iniciação.
(Ah, é?, p. 26)
O que resgata este diálogo da banalidade quotidiana? Podíamos
ouvi-lo na fila de um supermercado, enquanto aguardamos o autocarro, nas urgências
de um Hospital. As pessoas falam destas coisas, basta estar atento para escutá-las.
Mas o que há nestes diálogos de veemente é a capacidade de fotografar o invisível.
Neste caso, a saturação de uma mulher encalhada na vida doméstica. Ela não se
queixa apenas do filho, queixa-se de não ser livre, de não poder ser ela. E o
conselho que lhe é dado sublinha os absurdos da existência. Raramente reduzidos
ao puro nonsense, estes contos não lhe fogem totalmente. Porque o nonsense está
na própria vida das personagens, não é um mero exercício mental que corrompe as leis
da lógica. Faz parte da existência, mistura-se com a vida quotidiana. Isso
mesmo gera uma estranha ruptura na monotonia e no tédio com que encaramos o dia-a-dia,
é como se o absurdo arbitrasse o tal jogo que se processa entre as balizas do
sexo e da morte:
Primeiro o anúncio que se teu pai foi bebedor social você não
escapa dos alcoólicos anónimos.
Se acaso em menino você andou de bicicleta será sempre um
ejaculador precoce.
Agora essa que o maioral da igreja é uma rainha no baile de
travestis.
Toda a culpa? Do teu anjo da guarda. Só voa, o desgracido,
com pico na veia.
(234, p. 108)
No volume Ah, é? encontramos também algumas falsificações,
para usar termo caro ao argentino Marco Denevi, com referências a Rilke,
Modigliani, Homero, a personagens bíblicas, aos cínicos: «Aos quarenta anos você
pede menos que Diógenes, nem reclama da sombra de Alexandre na soleira do
tonel» (p. 8). A tendência aforística atravessa os dois volumes, assim como o
sentido poético da frase que ilustra o momento à maneira do haiku japonês,
repetindo-se os elementos naturais que conferem beleza a um panorama geral
muito menos atractivo:
Solta do pessegueiro a folha seca volteia sem cair no chão —
um pardal.
(Ah, é?, p. 15)
Bolem na vidraça uns dedos tiritantes de frio — a chuva.
(Ah, é?, p. 15)
Agulhas brancas ligeirinhas costuram o ar. Chove.
(234, p. 12)
As folhas da laranjeira batem asas numa gritaria. Pardais.
(234, p. 123)
O panorama geral trevisaniano, como já o temos referido, é o
do tempo na cidade, na cidade que o acolheu e que por ele foi escolhida como
palco para derivas literárias que recriam guerras conjugais, crimes passionais,
paixões humanas, encontros e desencontros no contexto de uma sociedade em
ininterrupta ebulição. Mas seria talvez incorrecto delimitá-lo a essas
fronteiras, pois, na realidade, o seu verdadeiro palco é o tal terreno de jogo
balizado pelo sexo e pela morte, um terreno muito mais amplo e universal ao
qual atribuímos nomes apenas para evitarmos sentir-nos completamente
desorientados nos labirintos domésticos em que nos trazemos presos.
Algures entre as balizas do sexo e da morte, Trevisan joga todos os seus recursos em sínteses que retratam a insuportável decadência das relações conjugais, traições, desamparo, cenas de ciúme, a solidão na velhice, o abandono na pobreza, retratos dessa vida que temos por certo ser nossa porque se exerce entre dois misteriosos momentos: o da concepção e o da morte.
ResponderEliminarAh, agora percebo porque detestei ler O Vampiro de Curitiba. Trevisan tem o dom de escrever sobre tudo o que não me interessa. Ele é apenas mais um banal cronista do quotidiano, com os temazinhos do costume das relações humanas. Já reparou que está a descrever uma telenovela? Relações conjugais, traições, cenas de ciúmes - cenas de ciúmes! Meu Deus, cenas de ciúmes!
O que resgata este diálogo da banalidade quotidiana?
Eu diria que nada. Se o que ele escreve eu posso ouvir na bicha do supermercado, então não deve ser grande literatura. Eu não tenho problemas com contos, adoro Borges e recentemente descobri um genial contista chamado Guy Davenport. Mas tenho problemas com pesos-plumas intelectuais como Trevisan que pôem o trabalho de linguagem de parte em nome da crença de que falar-se sobre a condição humana constitui o principal da literatura. Eu sobrevivo sem a tematicazinha da condição humana, mas não vivo sem grande prosa.
"um banal cronista do quotidiano"
ResponderEliminarOk, estamos falados. Você deve ter um quotidiano lixado.
Olá,
ResponderEliminarNa verdade o meu dia-a-dia não tem qualquer interesse. Mas sei distinguir uma narrativa criativa de um mero amontoada de histórias pescadas do Correio da Manhã.
Insisto que o que descreveu não passa de uma telenovela. Prove-me que estou errado. Ou então explique-me porque me devo interessar por esses temas comezinhos.
Comezinha é a vida, toda ela. E a literatura não vive de temas, tanto quanto vive do modo como os trata. Os temas são sempre os mesmos, os da vida comezinha. Ou há alguma coisa além da vida que vivemos comezinhamente? Quais são os temas não comezinhos que o encantam? Por exemplo, os temas aqui referidos são os temas da tragédia grega. Questões comezinhas: sexo, morte, violência, crime, dilemas morais... Há temas para lá disto? O tema, creio, nem importa. A Bíblia é toda ela comezinha, desde esses tempos remotos que andamos a escrever sobre as mesmas coisas. Pais que violam filhas, mães que traem pais, tipos que andam sobre as águas, mistérios do além, a vida vidinha que o O'Neill meteu em poesia e o Trevisan mete, do meu ponto de vista genialmente, em "ministória".
ResponderEliminarComezinha é a vida, toda ela. E a literatura não vive de temas, tanto quanto vive do modo como os trata.
ResponderEliminarExactamente, e a prosa de Trevisan trata-os de forma bastante banal. A prosa dele é quase jornalística na sua construção. Não tem verve nenhum, é seca, chupada, anémica e anódina.