terça-feira, 21 de abril de 2015

OS DIÁRIOS SÃO PRENÚNCIOS DE DOENÇA


incurável criatura sentada espera - sabendo de antemão
ser impossível o defunto aparecer     é de desmiolado
- mãos pousadas sobre o zinco da mesa obedecendo ao mando
dos ansiolíticos revestidos por asas veneno risca círculos
de loucura fundindo-se em moribunda trovoada de fúria cerrada
entre escombros da memória     pegadas sem atacadores
                                                                                    dentro do crânio
quatro paredes de tecidos carnais sem tecto

corvos debicando os miolos     mortos trancados em molduras
nas paredes assistem     vala comum de recordações
o soalho o isolamento     subúrbios de populaça moribunda
                                                                                        sarro
gargantas repletas de palavras agrestes escorrem pus de gritos
no desfocamento do alívio sofrido no fumo do cigarro fundindo-se
na lâmpada da neurose flamejando na deformação dos pesadelos
                                   a mioleira enferma de bichos desejosos
de novas geografias     de ave uma pena chamuscada

quando um homem eleva a mãe a deusa bofeteia o ausente pai
segurando na mão uma lanterna busca
                                                        o pingo sangrento de toda uma vida
engolir os caroços a cobardia a casca da laranja
                                                                       os gomos p'ró lixo
o corte dos pulsos as saudades de cortar à faca

bruta
        era a luz quando nasceu a terra do lugar os patrícios a fala
os modos sem caligrafia a arte de embrutecer em histórias avulsas
                                                                                                 clisteres
não limpam merdas passadas nem a ansiedade de se morrer depressa
ou a medonha cultura dócil de entreter abundante no facebook

um dono com chicote de lume     a humilhação: tojo a perder de vista
degola-se o tempo no sombrio sofrimento carnal
                                                                        olho-rolha no ânus
dum corpo s/ nome deambulando nas sombras do luar
pelos campos de tremoço seco     é lá que arde o cadáver da cantiga
entre a sucata dos hits no peito destroçado quando um desgosto passa
rente à saudade e os socorros chegam fora de tempo     o coração em cinzas
     é inútil a compressa que trazes sempre no bolso para a ferida
que irá chegar amanhã ferrugenta
                                                 meia-vida-meio-dia
transparente saco plástico enterrado na cabeça
apertado ao pescoço com fita adesiva     respiração sufocante ondula
o plástico num vai vem aos lábios até a morte rasgar
                                                                             o embuste do tempo
ir por aí rebolando pelo alcatrão como um traste sem reza nem garra
assistindo ao china esfomeado de genética na devoração duma perna humana
com soja     enquanto o sangue na Mongólia continua
                                                                              coalhado de tirania
os epilépticos e obscuros labirintos da solidão provocando queimaduras
nos lábios sem lábios
                                alienados no arame farpado nas gaiolas da terra
um tremor de saudade     o dia de amanhã morrerá aos pés do que virá
o drama depois do depois só restando do desespero os odores
dos tormentos repousando em macas como poeiras de leis de preconceito
injectando nos cérebros filmes esferovite     guiões desconexos
                                                                                             o alvo
em panóptica as setas alienadas médicos jogadores a assistência
vigilante tropa de choque promessas baixas     carbonatos de lítio
fluvoxaminas e rebuçados Dr Bayard na mesa de cabeceira     manipulações:
ferrolhos de culatra     as radiações do poder o controle um calendário
de azares     tatua labaredas flash dum homem atirando-se para a frente
do comboio a todo o gás     uma réplica doutro fim     os quartos
onde são despejados
                               os furiosos     matam
como injecções de insulina e fentanil
                                                      as latrinas e os escarradores
estão imundos como imundo está o continente europeu e os desgostos
incendeiam-se de enigmas     crimes mafiosos sem fronteiras veludo grená
     em tafetá uma plebe de abortos

fios eléctricos ligando o coração ao cérebro e ao sexo
criam curto-circuito     peitos devolutos nações de nódoas loucas
                                                                                                 hereditárias
o altifalante metralhando o recolher obrigatório   a apatia - bola de sebo
dilatando doenças rastilho - olhares perdidos gestos moribundos
pernas sem pés     onde estava o estupor quando nasceram?
jogando à batota com os discípulos? apedrejado chicoteado pregado
cuspido     e o povo... nada
                                              continua merdoso     o enjoo
contorcionista apalpando urnas de fruta podre no canibalesco baile
de máscaras da exploração capitalista     a democracia é a puta
de serviço no asilo dos alienados
                                                 a calamidade dos pobres
em condomínio fechado     as seringas furam os transtornos quadripolares
da teta da mãe sai leite corrosivo para os levar à morte     variante contrária
à camisa de forças e à razão do investimento financeiro feito pelos estados
nas cobaias     não digas para fugir do nada nem me leves o tempo
para a mentira     nem cries medos     tombo nos ponteiros dos dias
ao sentir o sangue nos olhares das crianças     e só me atraem
as que exibem o alinhavado sofrimento no olhar
                                                                      no quarto às escuras
mata as ratazanas à dentada que não param de sair ruidosas dos esgotos
dos meus ouvidos     e p'ráqui estou a 5 de Agosto de dois mil e 14
numa reles esplanada na Ponta da Piedade abandonando
na escuridão ao redor do farol     o Sonho
adivinhando que este mundo irá findar atómico
                                                                     dentro da madrugada
que se aproxima


Jorge Aguiar Oliveira (n. 1956), in Alma Sem Cura (2014). Uma vasta produção na década de 1980, distribuída, sobretudo, por edições de autor, foi reunida no volume Homens Sem Soutien (2002). Desde então, a poesia de Jorge Aguiar Oliveira tem continuado a crescer sem trair a corrosibilidade de um discurso visceralmente avesso às imposturas do normal e, já agora, do real tal como este parece ter sido entendido por grande parte dos poetas vindos a lume durante a década de 1990. Adoptando, a espaços, formas populares de versificação, fá-lo sempre num tom derisório que tem na sua essência uma vontade de denunciar as fraquezas de uma tradição poética avessa ao feio, ao desagradável, à ruína, ao declínio civilizacional que o século XX espoletou com os seus gulags e campos de concentração e que o século XXI tem sabido acolher com a estupidificação mediática das massas perante tragédias humanas reiteradamente elevadas à condição de espectáculo e, dessa forma, simplesmente ignoradas com cobarde indiferença. É, pois, uma poesia de forte cunho acusatório, sejam os seus temas a loucura, a homossexualidade, a morte, a repressão religiosa ou experiências pessoais que nos transportam para cenários decadentes, tugúrios, casas devolutas, latrinas, panoramas tingidos de abandono. De referir, igualmente, uma preocupação plástica que se reflecte no tratamento formal do poema, incorrendo amiúde em experimentalismos capazes de transformar mensagens gravadas num atendedor de chamadas ou escritos de WC em momentos poéticos de alto calibre provocador. 

3 comentários:

  1. Caro HMBF(dizer Exm. Sr. parece-me um bocado exagerado neste contexto).
    Nunca li nenhum livro seu, mas sigo este blog já faz algum tempo. Hoje, não sei porquê, ao ler o poema "OS DIÁRIOS SÃO PRENÚNCIOS DE DOENÇA" senti que devia denunciar a minha presença assídua de leitora. Parece-me indelicado continuar a ler este blog e a retirar dele tanta boa informação (do tipo "espiritual", nada de plágio) sem dizer que o faço. Aproveito também para dizer que, como estudante de Literatura na Universidade Nova de Lisboa, encontro matéria aqui que complementa, de alguma forma, o que quer que seja que eu aprendo lá na faculdade. Apenas por isto, obrigada pelo blog.

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  2. Marisa Alexandre, em tempos também frequentei uma universidade. Era um sítio escuro e feio, à excepção dos jardins circundantes onde, por vezes, me sentava a ler livros que não cabiam entre as quatro paredes do ensino oficial. Quase sempre os melhores. Agradeço o seu comentário.

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