Os três ensaios sobre poesia que João Barrento (n.
1940) reuniu sob o título Geografia Imaterial (Documenta, Outubro de 2014), título respigado na obra de
Maria Gabriela Llansol (n. 1931 – m. 2008), autora acerca da qual tem produzido
inúmeros ensaios, são atravessados por algumas linhas gerais de pensamento que
poderíamos sintetizar nos seguintes pontos: 1. a impossibilidade da definição
de poesia: «Toda a definição é, por natureza, falaciosa, e a pergunta sobre o
que é ou para que serve a poesia é de resposta impossível» (p. 21); 2. a redução
do potencial utópico da poesia a uma vocação simbólica da linguagem poética: «o
poema — não essa abstracção a que se chama «a poesia» — é sobretudo uma hipótese
de sentido entre muitas, mas uma hipótese que nos passa pelo corpo agora» (p. 16);
3. a concepção do poema enquanto lugar de superação de binómios tais como o de
peso-leveza: «a linguagem da poesia é capaz de ser grave sem ter peso, e leve
sem ser vaga» (p. 59). No último dos três ensaios, intitulado «Uma contra-música»:
Llansol e a questão da poesia, anteriormente publicado na revista Cão Celeste,
fica clara a relevância de Maria Gabriela Llansol enquanto ponto de partida
para as reflexões levadas a cabo. Autora de uma obra onde a relação com a
poesia é altamente problemática, «sempre incrédula em relação à poesia, e
convicta de que encontrará uma «saída clara», através de uma prática não poética
da poesia» (p. 101), Llansol deve situar-se numa leitura particular dos poetas
do Idealismo e do Romantismo alemães, nomeadamente no que estes tinham de
fragmentário e no modo singularíssimo como, sobretudo em Hölderlin e em
Novalis, o panteísmo grego é revivido através do amor à Natureza e às formas clássicas
de Beleza que, mais do que isolarem a poesia numa perniciosa construção de
mitos, a elevavam à condição de “real absoluto”. Ora, é precisamente num texto
sobre Hölderlin que Llansol diz: «Os poetas vêem, e anunciam a geografia
imaterial por vir». Esta “geografia imaterial” não é necessariamente um novo
mundo (utópico), pelo menos não tanto quanto parece ser um mundo espiritual (não
há que temer a palavra). Nesta espiritualidade cabe a tal energia/força do
poema que tanto Llansol como poetas na linha de Hölderlin pressentiam. Isto
leva João Barrento a tecer algumas considerações sobre o “hoje” e o “agora” que
carecem de esclarecimento. Por exemplo, quando afirma: «a poesia tornou-se hoje
mais sóbria, os poetas não gostam de atribuir qualquer papel à poesia, há muito
que fogem do tom grandiloquente, e com razão, porque afinal o fazer poético tem
pouco a ver com profetismos — mas tem tudo a ver com o «ver» de que fala
Llansol» (pp. 18-19). Não se percebe se àquela sobriedade se opõe algum tipo de
embriaguez profética, para utilizar um termo que o autor não evita, e,
sobretudo, se a grandiloquência de que fogem os poetas contemporâneos (quais?) turva
a visão (dos visionários? dos videntes?). A mim, parece-me, nunca a poesia foi tão tema entre
poetas como hoje, sendo inúmeras as considerações que proliferam por livros de
poesia onde, geralmente, a grandiloquência esbarra com uma fastidiosa e
entediante repetição de que “a poesia não importa”. Resta saber quando deixará,
de facto, de importar, já que a única realidade evidente hoje em dia é que não
exporta. Outra questão que talvez fosse interessante aprofundar é a que se
subentende na seguinte afirmação: «Não sei até que ponto a imagem da
«geografia imaterial por vir» se aplica ainda ao poeta de hoje. Penso que ele não
andará muito longe dela, embora sem pathos, mais sóbrio, pretendendo-se mais próximo
de um «real» que é apenas circunstância (pessoal? sem peso?), com receio de
tudo o que possa dizer-se «poético» e profundo — e caindo inevitavelmente
nisso!» (p. 80-81) Julgo ter compreendido a exclamação, mas escapa-me se a
«geografia imaterial por vir» se propõe enquanto leitura universal ou deve ser circunscrita
ao caso llansoliano. Llansol diz, na esteira do que já de algum modo também dizia Goethe: «Os
vagabundos erram à procura de uma nova paisagem. São, desde sempre, exteriores à
comunidade. (…) / Os construtores, os formadores são peregrinos. / Os poetas
também o são, de certo modo. Há uma grande afinidade que os liga aos
vagabundos. Porque são os únicos que desejam o retorno do ser como Belo.»
Independentemente de compreendermos aqui um programa ou um esforço de compreensão,
podendo inclusivamente aquele Belo assumir a forma clássica de Verdade,
a dúvida persiste na aparente incompatibilidade entre a sobriedade do “poeta de hoje” e a imaterialidade por vir, a qual remete
inevitavelmente para uma dimensão metafísica com a qual a circunstancialidade
da poesia actual parece ter dificuldades de convivência. Mesmo quando essa
dimensão metafísica se joga no domínio da linguagem, sendo esta física,
corporal, mental, a generalidade da poesia que hoje se pratica distancia-se desse
reconhecimento da fonte da Beleza (verdade?), adoptando discursos ora
entretidos com a passagem corriqueira das horas, ora eivados de humores
diversos e uma ironia indolente que faz da poesia o seu próprio objecto e do eu
(confessado, biografado) o princípio e o fim do mundo. «Tantos poetas, tão
pouca poesia», conclui a autora de Um Falcão no Punho. Facto ou não, é com os pés
na terra que a poesia se faz e se lê e se pensa. Porque como qualquer outra
actividade humana, ela pensa-se. Dentro do mundo. Julgar o contrário é condená-la
a esse estatuto de aberração que lhe retira a força de transpor limites e a
isola num ensimesmamento patético e insuportável.
Parece-me um bom livro de ensaios para procurar na próxima Feira do Livro.
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