quarta-feira, 22 de abril de 2015

NA DROGARIA


Raticidas, anilinas, alicates, soluções.
Por isso e outros bens abordava-nos o mundo,
rostos disputados por domésticos saberes,
amáveis ilusões. Enrolávamos em sombra de jornal
uma barra de sabão, um frasco de veneno,
novas dobradiças para uma porta velha.

A viva clientela feminina perguntava
por perfumes invisíveis, achava tudo caro,
cobiçava o novo creme para as mãos.
Acabava por comprar meio litro de lixívia.

Por outro canivete, óleo de linhaça,
chegavam os maridos, os pequenos aprendizes.
Pedreiros, picheleiros, algum estucador,
pediam diluentes, ferragens luminosas,
petróleos, parafusos, o amor. Amigos de beber,
falavam-nos de pedras e areia, da vida
nos andaimes, das botas no cimento,
e do tempo sem retorno
em que um prego na parede tinha a sua utilidade.

Uns e outros
mediam com os risos o talento de sofrer.
Na malícia do abraço se cruzavam as histórias
de terreiro e carne viva.
Despediam-se, depois, deixando-nos entregues
ao betume do silêncio,
os olhos mergulhados em cadernos, em pó de gesso-cré.
Desde o fim do mundo até ao fim do mundo.


José Miguel Silva (n. 1969), in O Sino de Areia (1999). «O aparecimento de O Sino de Areia foi um dos momentos que mais me surpreendeu entre a mais recente poesia portuguesa, pela intensidade do tratamento do familiar, pelo romper da surda fonte que faz o nosso dia-a-dia tornar-se versos em alguns. Independentemente do que eu agora sei o autor ter escrito depois, era um livro profundamente significativo de um registo novo da fixação a um quotidiano e a uma memória pessoal que nunca se deixavam afastar da triunfante trivialidade para conseguir uma escrita de grande força e sedução. (...) Até aqui, fulcralmente, o autor manifestara a acidez de um olhar sobre um mundo de certo modo desolado e em que sempre ocorriam palavras amargas sobre si mesmo. Como se um mal fizesse parte de outro mal. E nesse jogo do olhar para fora com o que tem dentro se tecia o padrão que buscava falar de uma aridez, mas o tinha de fazer no centro de uma florescência de palavras articuladas com uma sensível desenvoltura.» (Joaquim Manuel Magalhães, Expresso, 28 de Agosto de 2004).

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