sexta-feira, 21 de abril de 2006

UMA CASA NA ESCURIDÃO

Sou um péssimo leitor de ficção. Prefiro o conto e a novela ao romance. Devo ter lido uma dúzia de romances que amei profundamente. Dito isto, os meus considerandos subsequentes, muito mais do que os outros, valerão nada de nada. Os outros valem apenas nada. Acontece também que leio mais ficção estrangeira do que nacional, sendo que as minhas predilecções vão sobretudo para os clássicos. Para começar a redimir-me de cenário tão pobre, peguei num romance de um jovem romancista português cuja poesia tinha lido e apreciado. Resultado: uma leitura penosa, fastidiosa, um tédio tremendo, um cansaço a degenerar numa irremediável desilusão. Refiro-me a Uma Casa Na Escuridão (Outubro de 2002), segundo romance de José Luís Peixoto (n. 1974) depois do aclamado Nenhum Olhar (2000). Dividida em sete partes (O Amor, O Amor É Tudo O Que Existe, As Invasões, O Amor É Impossível, A Peste, O Amor É A Solidão, A Morte), a história de Uma Casa Na Escuridão é-nos narrada pela personagem central: um escritor apaixonado pela imagem, surgida dentro de si, da mulher mais bonita do mundo. O leitor é constantemente remetido para o interior dessa personagem através da repetição exaustiva da expressão «dentro de mim». Esta é, justamente, uma prosa que joga ao cansaço com velhas técnicas de um discurso mais poético: anáforas, repetições e aquele tique de repetir uma palavra, uma frase ou uma expressão no final de uma frase, dando-lhe um efeito de eco ou sublinhando, com enfatuada eloquência, a importância do que está a ser dito: «O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda. O amor é o sentido de todas as palavras impossíveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor é a paz fresca e a combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. À tarde, o sol como uma certeza. O amor é feito de claridade e da seiva das rochas. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente» (p. 25). Este parágrafo, por exemplo, até daria um poema em prosa interessante. Num romance, cheira-me a lirismo supérfluo. Ainda mais quando o parágrafo seguinte repete exactamente as mesmas frases, acrescentando no início a voz do narrador dizendo que acreditava mesmo que o amor era aquilo tudo. Trata-se de um excerto meramente exemplificativo do que menos me agradou neste livro, a par do recurso a um velho dicionário composto de palavras como «angústia e dor e tristeza e sofrimento e mágoa» (p. 160), que não se livra dos lugares comuns mais enjoativos, façam-se eles de antíteses - «sombras de luz dentro da luz» (p. 17) ou «um tempo sem horas, entre as horas» (p. 83) - ou de referências como «o cheiro da terra molhada» (p. 26, 34, 51), «olhos a serem dois poços muito fundos de água límpida» (p. 28), árvores deixando cair folhas amarelas, «como se deixassem cair lágrimas» (p. 29). Mas o pior sucede quando esse arsenal resvala no lamechismo puro e duro: «A minha mãe fraca e bela, linda. A minha querida mãe que me pegava ao colo e que, naquele dia, já eu era homem, já fazia a barba, e achava por isso que era homem, já me apaixonava e padecia por mulheres, e achava por isso que era homem; a minha querida mãe, naquele dia, pousou a mão sobre a minha mão, e eu olhei os seus olhos lindos e castanhos, doces e tão belos de menina, e soube tão profundamente que o nosso amor era mais imutável do que as rochas, do que a montanha, do que o céu todos os dias, todos os dias, todos os dias até ao fim do último fim depois do fim da eternidade» (p. 84). Há nesta prosa de José Luís Peixoto uma confusão voluntária entre os domínios do sonho e da realidade, uma confusão que poderia ser estimulante não fosse o resvalar em lamechices entediantes do género da supracitada. O melhor que se retira de Uma Casa Na Escuridão é um imaginário «gótico», feito de gente mutilada e putrefacta, soldados com roupas de ferro e barba até à barriga, gatos lambendo poças de sangue… É neste contexto que surdem as personagens mais curiosas: o príncipe de calicatri, a quem arrancaram «os mistérios mais profundos da sua sabedoria» depois de «no lugar do coração» lhe terem deixado «um buraco de vermelho vivo» (p. 115); ou o visconde de dedodida, com um «buraco grande e circular que lhe atravessava a barriga», outrora «uma mulher que estava grávida quando as invasões chegaram à cidade» (p. 237); ou, por fim, o «homem que não tinha orelhas e que não tinha olhos e que não tinha nariz e que não tinha língua», sendo por isso chamado de ninguém. (p. 117) Aparte isto, Uma Casa Na Escuridão não me encorajou. Foi mais um romance que terminei após muito, muito, muito, muito tédio. Muito tédio. Muito. Tédio.

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