sexta-feira, 7 de novembro de 2025

ÓRFÃOS

 


ÓRFÃOS
de Dennis Kelly
 
20 de novembro a 13 de dezembro
Sala Estúdio do Teatro da Rainha
 
   Até onde estaria disposto a ir na defesa de um familiar? Este podia ser o mote de Órfãos, peça de Dennis Kelly que, desde a estreia em 2009, nunca mais deixou de ser encenada um pouco por todo o mundo. A criação que o Teatro da Rainha traz agora ao público português, com tradução e encenação de Henrique Fialho, reforça a questão inicial buscando desmontar a lógica do “nós ou eles”, do “quem conhecemos contra quem não conhecemos”, das “pessoas de bem vs. pessoas de mal”. A partir de 20 de novembro, de quarta a sexta-feira, até 13 de dezembro, sempre às 21h30, a Sala Estúdio do Teatro da Rainha será palco de um jantar romântico convertido em laboratório do mal.
   Helen (Inês Barros) e Danny (Tiago Moreira) estão a desfrutar de um momento apaixonado na vida de casal quando são surpreendidos pela chegada abrupta de Liam (Fábio Costa), irmão de Helen, manchado de sangue do tronco para cima. À dúvida sobre o que terá acontecido, seguem-se incertezas sobre como proceder face às explicações contraditórias de Liam. Com diálogos impressionantemente bem concebidos, a trama desenrola-se através de uma sucessão de argumentos, lapsos e falácias, típica dos thrillers psicológicos cuja marca essencial é o suspense que garante tensão do princípio até ao fim.
   A entrada em cena de Liam é o motor de arranque de uma discussão sobre a volatilidade dos laços familiares, as fracturas sociais, a criminalidade, o aborto, os efeitos da imigração, o racismo, a tortura, a alienação da consciência moral e dos valores que a sustentam. Tal como o título indica, estamos perante um objecto em que o desamparo e o abandono são marcas essenciais, ainda que não devam ser lidas de modo literal. A orfandade aludida na peça dá-se tanto no plano familiar como no plano social. Disse o próprio Dennis Kelly, em entrevista a Lyle Brennan (The Skinny), que o título «se refere a uma sensação de nos sentirmos órfãos dentro da sociedade.» (2009).
   Uma das dimensões mais interessantes neste trabalho do dramaturgo inglês é precisamente o modo como nele se processa o encontro entre uma sociedade corrompida pela violência, pela cultura do ódio, e uma família num momento de disrupção motivado pelo confronto com a realidade. Em Órfãos não vislumbramos nenhuma tentativa de nos convencer do que quer que seja. A situação abordada é antes exemplo de como nenhuma pessoa está a salvo da barbárie e da crueldade.
   Com tradução e encenação de Henrique Fialho, Órfãos conta com a interpretação de Fábio Costa, Inês Barros e Tiago Moreira, cenografia de José Carlos Faria e desenho de luz de Hâmbar de Sousa. Mais informações em teatrodarainha.pt.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

ZOHRAN MAMDANI

 
Depois da Irlanda e dos Países Baixos, uma notícia animadora chega de Nova Iorque: "Em Nova Iorque, Zohran Mamdani, de 34 anos, foi eleito presidente da câmara, tornando-se o primeiro muçulmano, o primeiro nova-iorquino de ascendência sul-asiática e o primeiro nascido em África a liderar a maior cidade do país. Mamdani derrotou o ex-governador Andrew Cuomo e o republicano Curtis Sliwa, consolidando a ala progressista do Partido Democrata."

sábado, 1 de novembro de 2025

ROB JETTEN

 
Depois da Irlanda, uma boa notícia chega dos Países Baixos: "Eleições nos Países Baixos: Rob Jetten e democratas do D66 festejam vitória quase confirmada. Com mais de 99% dos votos contados, a vantagem democrata já não poderá ser suplantada pela extrema-direita, avança a agência noticiosa holandesa ANP. Geert Wilders não concede a derrota do PVV. (...) Líder do partido com maior representação na Tweede Kammer (a câmara baixa do Parlamento), Rob Jetten surge como o provável próximo primeiro-ministro dos Países Baixos. Aos 38 anos, será o mais jovem de sempre e o primeiro abertamente homossexual. É um progressista de centro-esquerda, social e economicamente liberal."

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O DIA DE ONTEM

Ontem telefonei a um amigo para lhe pedir um contacto, motivação interesseira tantas vezes na origem do que nos leva a falar uns com os outros. Lá desabafámos sobre a vida em que andamos metidos, com respectivas queixas sobre o mundo e a dificuldade crescente de arrancar o povo às redes e lixo televisivo. Depois fui trabalhar e depois do trabalho continuei a trabalhar, até que, num finalmente momento de pausa, cometi o pecado de, também eu, pegar no telemóvel e espreitar o fluxo noticioso. Devia ter ido a um café beber um copo de vinho, ler mais umas páginas do Nuno Bragança, fazer um desenho, escrever meia dúzia de linhas. Pequei. A primeira coisa que me apareceu no telemóvel foi um vídeo de uma praxe em Tomar, com humilhados enfileirados, de joelhos, e um imbecil aos berros convencido de que exercia sobre os outros uma qualquer forma de poder indistinguível da humilhação infligida por altas patentes a soldados rasos. Que pessoas andamos nós a formar?, interroguei-me. E nisto de me interrogar pensei nos pais daqueles rapazes e daquelas raparigas, no que andarão a fazer e no que fizeram ou não fizeram para transmitir alguns valores. Quais? Ocorreram-me igualmente queixas de ex-colegas sobre o ambiente nas salas de professores, com cada vez mais docentes desavergonhadamente racistas, xenófobos, homofóbicos, escudando-se em declarações preconceituosas e estereotipadas sobre a sociedade em que vivem e pela qual têm enorme responsabilidade. Pensei nos cartazes racistas do partido que não quer ser chamado de racista, tal como os estúpidos que não querem ser chamados de estúpidos porque, enclausurados na sua estupidez, são incapazes de reconhecer que lhes falta qualquer coisa - estudo, trabalho, humildade - para serem minimamente informados. Nisto de tanto pensar vim para casa, deitei-me no sofá a ouvir o relato do Sporting na CMTV, ou seja, num canal de televisão execrável que me oferecia gente a ver bola e a comentar o que via. Nas notícias, mais um grupo de adolescentes que violou uma rapariga de 14 anos e exibiu as imagens nas redes sociais, isto depois de termos começado o ano com influencers a violarem uma menor em Loures e ainda há dias termos dado com uma mãe assassinada pelo filho de 14. Nada disto é ou pode ser por acaso, tudo isto está relacionado com o clima de ódio e a cultura do medo que promovemos com descaso e permissividade. Da ausência de valores e educação no seio familiar à desumanização do ensino, passando pelas praxes e acabando nos exemplos dados com cartazes e deputados aos berros, o caminho para o pior está desbravado. Resta saber como invertê-lo. A ver a CMTV não é de certeza. Isto, de facto, não é o Bangladesh. Isto é uma latrina cada vez mais irrespirável. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

ENTRETENIMENTO

 
"Tive que gramar com o Badaró, depois com o Batatinha e, mais tarde, com o macaco Adriano. Porra, podiam ter-me poupado ao Ventura." Quitéria dixit.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

OS NÃO-INTOXICADOS

 
«Ah, o olhar fácil, abutresco, dos (clinicamente) não-intoxicados. A lampeirice dos que arquivam no desprezo (teórico e prático) os e as que agarram a seringa ou a garrafa ou o comprimido – ou tudo junto; o fareisísmo de quem se droga de «bom comportamento». A filha-de-putice dos meninos e meninas exemplares, que curtem a deplorável acidificação de quem não espera mais da vida do que o sucessozinho passageiro; aquele ferrado de polvo com que agarram quem se aproxima dos tentáculos do «como-deve-ser». Puta filha de puta de «legalidade»; como não cagar em ti, pra ser honesto? E porventura sabe algum dos instalados o que aponta a porta estreita da liberdade? Fechados no conforto das suas rodinhas, os como-eles, os instalados: cabrões, gerados por (e gerados de) imperdoáveis cornos, com que agridem dia a dia todo o progredir humano.»

Nuno Bragança, “Directa” (1977).

terça-feira, 28 de outubro de 2025

ESTIGMAS

 
Tendemos a julgar os "estigmas raciais" mais em função da cor da pele do que em função de preconceitos de classe, estereótipos políticos ou de um certo etnocentrismo cultural instalado no Ocidente. Ora, fenómenos como o de Bolsonaro no Brasil ou o de Trump nos EUA demonstram como estamos errados. Há tempos, li um artigo sobre o aumento de apoio a Trump entre os negros. Ventura também se gaba de ter ex-imigrantes na bancada do Chega, pessoas a que chama portugueses não originários. Hoje, mais do que a cor da pele, o que mexe com os nervos da extrema-direita que pulula nos corredores do poder é uma ideia de superioridade cultural relativamente a tudo o que não seja católico, evangélico, cristão. Eles não odeiam os hindustânicos por serem um pouco mais escuros do que os ruivos de Albufeira, mas sim por julgarem que os hindustânicos são todos muçulmanos. Mesmo os que sejam hindus ou budistas ou outra coisa qualquer. O que eles não suportam é o islamismo e o comunismo ou o socialismo, que os broncos dos states associam à imigração sul americana. Mais do que a cor da pele (os judeus odiados por nazis eram brancos), o que está sempre em causa é o modo como te vestes, a quem oras, a etnia a que pertences, o partido em que votas. O que eles odeiam é a diferença, o que não suportam é tudo o que não encaixe nos seus uniformes. O acolhimento aos ucranianos lourinhos nunca seria o mesmo a oferecer aos palestinianos escurinhos, não apenas por uns serem louros e os outros não. É que os primeiros são como nós, isto é, facilmente se ajoelham em Fátima, os segundos não.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

TEMAS

 
Temas que surgem durante os ensaios: Markham Street, Shackleton, basmati crocante, feiras de máquinas a vapor, Petrocelli, Lynx, sofás John Lewis, I’m alright Jack, o movimento graffiti de Philadelphia nos anos 80, eagle-star, trip-hop, Nietzsche para além do bem e do mal, Pinter e o problema da verdade... Qual a melhor forma de arrumar o desarrumado? “Órfãos”, de Dennis Kelly, estreia dia 20 de Novembro.

domingo, 26 de outubro de 2025

TRÊS SALAZARES

 
André Ventura disse, numa entrevista à SIC, que “o país está tão podre de corrupção, impunidades, bandidagens que eram precisos três Salazares para pôr isto na ordem”. E, já agora, um Hitler ao cubo na Alemanha e um Mussolini em Itália e um Franco em Espanha e um Estaline na Federação Russa e um Mao na China e um Pinochet no Chile e um Videla na Argentina e um Pol Pot no Cambodja e um Papa Doc no Haiti e um Leopoldo II na Bélgica colonial e etc... Felizmente, temos estabilidade na Coreia do Norte. Não fora isso, o mundo estaria perdido.

CATHERINE CONNOLLY

 
Catherine Connolly vence eleições presidenciais na Irlanda com larga margem. A candidata independente apoiada pelos partidos de esquerda e centro-esquerda foi eleita com a percentagem mais alta de votos de sempre: 63% dos votos.

sábado, 25 de outubro de 2025

GORGULHO

 
Sempre que ouço falar no orgulho em ser português lembro-me de Francisco Xavier de Oliveira, que no século XVIII falava disto como um relógio atrasado pela Inquisição. Não tenho orgulho em ser português porque só me orgulho do que faço, ter orgulho em ser português é tão ridículo como ter orgulho em ser homem. Calhou assim, por azar ou por sorte. Sei que gosto de Portugal, um pequeno país com uma longa história, repleta, como todas as longas histórias, de factos admiráveis e de outros escabrosos. Ando pelo país e admiro a diversidade do território e das respectivas tradições, alicerçadas numa miscelânea de culturas que, estou certo disso, a maioria dos portugueses desconhece. De resto, o maior vício de Portugal é mesmo a incultura dos portugueses. Já Almada Negreiros o denunciava, e com toda a razão. Veja-se esta conversa em torno da nacionalidade, o crescente discurso de ódio contra a imigração num país que sempre foi de emigrantes e andou a espalhar sémen pelos quatro cantos do mundo, um país que exibe nos subterrâneos do metro frases icónicas de filósofos clássicos - "Não sou ateniense nem grego, mas sim um cidadão do mundo". - pelas quais os portugueses passam como cães por vinha vindimada. Depois de termos sido mouros, andámos a copiar espanhóis (já agora, o espanhol foi a língua da nossa corte durante séculos), depois copiámos os italianos, depois os franceses, os ingleses, os alemães. Sempre a reboque do lá fora, cá fomos fazendo a nossa vida dentro discutindo se há uma filosofia portuguesa ou apenas filosofia em Portugal. Eu cá acho que há muita desmemória, pouca educação e, por consequência, uma falta de civismo gritante que redunda em números impressionantes de sinistralidade rodoviária, violência doméstica, grunhice por metro quadrado e num culto da chico-espertice e da hipocrisia - herança católica - que faz de nós, os portugueses, um povo desmerecedor das variantes de bacalhau encontradas de norte a sul do país. Portanto, não me venham cá com o orgulho em ser português, que o José Sócrates, o Joe Berardo, a Dona Branca, o Duarte Lima e a Rosa Grilo também são. Eu estou cada vez mais com o saudoso João César Monteiro: "Não vogando já na doce ilusão de uma sociedade sem classes, concordei em aceitar viver numa sociedade sem classe." De preferência, à distância. De mim e dos outros, acrescento.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

TIQUES TOQUES

No espaço de dias, uma filha que esfaqueia o pai, um miúdo que mata a mãe, um traficante de droga britânico capturado pela PJ em Boliqueime, etc, etc, etc... Tudo crimes cometidos por gente de bem. A escumalha das percepções não deve ter dado por nada.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

666

 
Ventura vai dar mais uma entrevista, a 666 nos últimos 5 anos, a um canal de televisão, desta feita ao do falecido pai da liberdade de imprensa em Portugal, cujo grupo por si edificado está prestes a ser vendido aos fascistas italianos. Tudo no lugar certo, como sempre.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

SOB CERCO

 
Da conversa com Gisela Casimiro ao dia de ontem, entre outras, a história da poeta Stella Nyanzi. Fugiu do Uganda para poder denunciar as injustiças no seu país, mas, fixada na Alemanha, rapidamente percebeu que não podia desrespeitar o país de acolhimento dizendo o que pensa. Por exemplo, sobre Gaza. O pensamento livre está cercado, estamos cada vez mais sós no exercício de pensar livremente.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

CENOGRAFIA

 


Estamos a pouco menos de um mês de estrear “Órfãos”, de Dennis Kelly. Apresentada pela primeira vez em 2009, no Traverse Theatre de Edimburgo, esta é uma das peças mais bem-sucedidas do dramaturgo inglês. Desde a estreia, “Órfãos” nunca mais deixou de ser encenada um pouco por todo o mundo. Um jantar romântico é subitamente interrompido pela chegada de um familiar coberto de sangue. O que terá acontecido? Esta inesperada perturbação no núcleo doméstico descontinua o ambiente de bem-estar, deslocando para o interior do lar o sobressalto das ruas. Daqui em diante, o que teremos entre as três personagens em cena é um jogo triangular entre paredes marcado pelas referências ao exterior, um triângulo numa geometria diagonal que sugere, na cenografia assinada por José Carlos Faria, uma desordem que se ajusta à situação representada.
 
HELEN: Liam, quero que olhes para mim.
LIAM: Sim.
HELEN: Olha para mim.
LIAM: Estou a olhar para ti.
HELEN: Olha para mim.
LIAM: Certo.
HELEN: Quero que penses. E quero que me digas. De quem é esse sangue.
 
“Órfãos”, de Dennis Kelly, estreia dia 20 de Novembro na Sala Estúdio do Teatro da Rainha com tradução e encenação de Henrique Fialho, desenho de luz de Hâmbar de Sousa e interpretação de Fábio Costa, Inês Barros e Tiago Moreira. Mais informações em breve.


segunda-feira, 20 de outubro de 2025

ELOGIO DO MORTO


Este ninguém sabe quem foi
andou pela vida aos trambolhões
dormindo onde calhava
comendo as sobras dos outros
tapando as carnes com lixo
 
Diz-se que veio das áfricas
já meio fora de si
mas ninguém sabe ao certo
se foi por traumas que aqui
chegou para daqui
não mais sair
 
Teve a vida que teve
como de resto todos os mortos
e não fez mal senão a si mesmo
se assim podemos falar
 
De bem também não se lhe
conhecem feitos
apenas uma ou outra velha
ajudada com as compras
a troco de carcaças e maçãs
 
Ignorá-lo na morte
depois de o terem ignorado na vida
talvez seja o melhor elogio
que lhe possa ser feito
 
Agora que está morto é esperar
que definitivamente desapareça
o seu perfil nas páginas do tempo
ou que alguém preencha a cores
os contornos transparentes do seu corpo