Levedura
Edições Húmus
Maio de 2022
Que se felicite a Ucrânia por esta vitória, está muito bem. Sempre é uma alegria para um povo macerado pela guerra e as pessoas no geral adoram estes gestos paternalistas. Que se atribua aos russos o prémio da "guerra mais brutal e cínica desde a II Grande Guerra", não admira. É a desfaçatez do costume. (Ainda ontem, para me entreter, via um filmezito chamado Barry Seal: Traficante Americano e desatei a rir ao lembrar-me destas declarações. Infelizmente, a tosse travou o riso e tive de ir à casa de banho escarrar.) O que deixa um tipo sem forças neste cenário é a sensação de já estar a viver numa quinta dimensão da alienação mental. A indefensável invasão da Ucrânia pela Federação Russa tem produzido este efeito estranho, percebemos de um modo claro e inequívoco como o espectáculo tomou conta de nós e tudo se processa numa lógica pop que revira, contorce, subverte e volta a inverter velhos valores. O que disto deve ficar registado é simples: 2022, ano em que a OTAN, uma aliança militar, se pronunciou sobre o Festival Eurovisão da Canção. Não quero imaginar a galhofa que será, daqui a cem anos, os historiadores tentarem compreender este nosso tempo. Se ainda houver historiadores daqui a cem anos.
As pessoas acreditam que depois de operar todo o tipo de milagres, Jesus foi crucificado, ressuscitou e subiu que nem um foguetão na direcção dos céus. Acreditam que a 13 de Maio de 1917, a Virgem Maria, que em tempos havia engravidado sem dar uma queca, apareceu a três pastorinhos. Portanto, não me espanta que acreditem que Putin vá desnazificar a Ucrânia. Nem que a Ucrânia seja uma democracia liberal com todas as condições para aderir à UE. Espanta-me, porém, que a justiça portuguesa, em pleno século XXI, não considere a Nova Ordem Social um grupo racista. Não é questão de fé, neste caso. E é por isso que me espanta. Um dia destes vamos todos perceber que o racismo não é racista.
Perante o objecto várias hipóteses se colocam: o silêncio talvez seja a mais avisada, a descrição é inútil, a interpretação resulta de uma invenção que de algum modo atraiçoa o objecto. Mas interpretar não é propriamente inventar o que não está, é antes criar sobre o que está. Tomemos de exemplo este trabalho de José Maria Bustorff, outrora Jochen Maria Bustorff, da exposição intitulada «José Afonso, seus amigos e outras telas de intervenção» (Pombal, Fevereiro-Maio de 2022).O que salta à vista, desde logo nas margens, são representações de personalidades políticas contemporâneas mais ou menos identificáveis: Bashar al-Assad, Erdoğan, Benjamin Netanyahu e António Guterres do lado esquerdo; Putin, Ali Khamenei, Papa Francisco e Abu Musab al-Zarqawi do lado direito. Repare-se no modo como a composição adopta a disposição do conjunto, quatro telas organizadas porventura à laia de pontos cardeais. Tanto os homens do oeste como os de este têm o dedo indicador levantado e hirto, não como quem pede para falar, mas como quem acusa ou impõe uma posição. Aviso? Advertência? Ameaça? A excepção é Guterres, que, com as duas mãos erguidas e um rosto suplicante, parece mendigar ponderação, ou talvez união onde a regra é desunir. São figuras de um tempo histórico concreto. Daqui a uns séculos deixarão de ter nome, cairão no esquecimento, o que as define é a posição das mãos e os trajes de político ou de líder religioso. Qualquer pessoa saberá identificar nelas representações possíveis do poder. Depois há os aviões militares, a verde, como varejeiras, o helicóptero, blindados, a força dos exércitos concentrada a norte, sobrevoando o povo anónimo disposto a sul. O cenário é de guerra, de conflito, de angústia, de confusão. A ausência de vermelho cor de sangue demove qualquer tipo de propósito sensacionalista. O fundo é ocre como o dos mapas demográficos, tudo gira em torno daquela citação central de “O grito”, de Edvard Munch. Mas o que mais me atingiu neste trabalho não foi nada do que acabei de descrever fugaz e toscamente, o que mais me impressionou foi a concentração de branco em torno do grito, da figura indígena a lembrar, pelas formas, uma das mulheres de Gauguin, do recém-nascido no berçário. Afastando-me, esse branco forma como que dois pulmões. E aí eu vejo o sistema respiratório da humanidade atacado por vírus, vejo uma radiografia do tórax planetário e as manchas que aparecem nos pulmões transformam-se em indicadores de tumores cancerígenos. Isto que eu vejo está lá sem estar, resulta da minha interpretação, é um modo de ver que acrescenta à obra realizada um pouco de nós. O silêncio talvez fosse a hipótese mais avisada. Ou talvez não. O próprio quadro, a composição, curiosa e paradoxalmente, é também ele/ela uma invenção sobre o criado. No fundo, o que neste trabalho surge representado é a razão de ser do grito, o motivo do desespero, a raiz da angústia. Nesse sentido, a expressividade é talvez a sua maior força. Como se tivesse entrado pela boca de quem grita e, chegando à garganta, compreendesse os motivos que agitam com tamanha energia as cordas vocais do desespero.
Ter revisto Paris, Texas levou-me de novo a eles. Não por terem alguma coisa que ver com o filme de Wim Wenders, mas apenas pela coincidente referência ao deserto de Mojave. E por sentir uma saudade imensa do deserto, o vazio estendido diante de nós como lençol na cama por fazer. Estou infectado. Apareceram ontem os primeiros sintomas, nada de grave. Fiz o que ditam as regras, isolei-me a ler e a ouvir música. Nada mau. Pior é o palato esbatido e a energia desmaiada. O mundo fica assim protegido da minha presença, pelo menos durante uma semana. Não contagio ninguém com a doença que me traz os pulmões atados à tristeza mesquinha de quem insiste em procurar sentido para o absurdo. Tenho andado de um lado para o outro, a esmo, com um pé no abismo e outro na joi de vivre. Quantas vezes se repete em mim a palavra loucura? Fico parvo a olhar para as ocorrências, duas filhas a crescer, livros que ninguém lê sucedendo-se, uma pilha de lixo acumulado, terras herdadas que nunca pisei, duas casas pelas quais nem um tostão investi, o amor trocado pela cómoda em que se arrumam retratos, fotografias, passados, um cansaço tremendo de cativo de mim mesmo não conseguir sair de mim. Tento olhar as coisas à minha volta como se nelas não jazessem os meus olhos. Atingem-me as interpretações que faço do que vejo e sinto como dardos a trespassarem um corpo morto. É-me insuportável a facilidade com que as pessoas saltam de uma crise para a outra sem nem um dedo sujarem nos problemas que as afectam, pelo que me isolo e asilo na doença pedindo misericórdia a um deus que nunca me convenceu.
Ardem-me os olhos e não é de sonos mal passados nem de álcoois ou tristezas, ardem-me de cansaços antigos. Fui ver o que era feito dele, o rapaz que dava pelo nome de Baby Bird. Quando eu era feliz, ele aparecia muito nas capas dos jornais. Depois desapareceu. Terei alguma vez sido feliz? Quantas vezes merece alguém ser feliz durante o percurso de uma vida? Pouco descobri sobre esse que escreveu centenas de canções de um dia para outro, mas aquilo só tinha interesse em gravações rudimentares. Quando passou para um estúdio em condições perdeu a graça, o sucesso matou-o. Dedicou-se à escrita, é o que fazem as pessoas cuja graça se perdeu num fugaz momento de fama. Levava-o comigo para todo o lado e ontem aconteceu levá-lo novamente quando, a caminho de um café, bati com o nariz na porta fechada, contornei o prédio e entrei pelas traseiras reivindicando o tinto e a sandes de presunto a que tinha direito. Já nada me liga àquele sangue. Vim para casa a pensar nisso mesmo, sem remorsos. As coisas são como são, tortas. Não vale a pena o esforço de tentar endireitá-las. À noite, os cafés enchem-se de gente aos berros sobre televisões ligadas num qualquer canal desportivo. Os homens falam demasiado alto, aparentemente tolhidos por uma embriaguez que é só vontade de dar nas vistas. Elas servem-lhes sorrisos perscrutados por uma tristeza comezinha retocada ao espelho da casa de banho. Eles têm barrigas grávidas de excessos e desperdícios, prazeres arrotados para dissimular sentidos. Perdem demasiado tempo com piadas sem piada alguma, armados em brutos como se fosse necessário fingir aquilo que naturalmente se é. Ardem-me os olhos de cansaços antigos, doença bela espalhando-se pela alma, atingindo o corpo, corroendo o espírito que obriga a óculos de sol na noite mais escura. Talvez uns minutos a mais no banho possam adiar esta morte.