sábado, 13 de março de 2010

pullllllllllllllllllllllllll



«Esperamos que a vossa experiência de leitura possa ser tão desconcertante como foi a nossa tentativa de tradução – à falta de melhor palavra para uma prática poética que puxaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa a linguagem até ao limite» (p. 7). O desejo formulado por John Havelda, Isabel Patim e Manuel Portela, organizadores e tradutores de pullllllllllllllllllllllllll (Antígona, Fevereiro de 2010), pode servir de mote para algumas questões sempre associadas a um trabalho como é aquele que ora nos ocupa. Antes de mais, um exemplo inócuo e, provavelmente, irrelevante aos olhos de alguns leitores: o título da antologia é dinâmico. pullllllllllllllllllllllllll, uma espécie de neologismo, aparece grafado ora com 26 éles (no miolo), ora com 12 (na lombada), ora com 11 (na capa, se não tivermos em conta o saca-rolhas). O número é indiferente, mas não deixa de ser curiosa esta confrontação imediata com uma intenção subjacente a toda a poesia aqui reunida, ou seja, a de se jogar com a linguagem a ponto de tornar o significado e o sentido elementos secundários na concepção do poema. Importará mais a sugestão de uma ideia, de uma imagem, ou a exploração do ritmo e da musicalidade nas suas dimensões menos constrangidas, do que submeter a palavra a uma eventual mensagem cuja comunicabilidade é sempre discutível e radicalmente subjectiva. Isto, apesar das normas e das regras gramaticais, sintácticas, ortográficas.

Os autores coligidos podem não parecer preocupados com o que têm para dizer, pelo menos não tanto como parecem empenhados na experimentação do dizer ele mesmo – subvertendo as regras, minando a gramática, armadilhando as normas, jogando, espartilhando a morfologia da palavra. Isto não significa um radical esvaziamento de sentido, apenas e tão-só que o sentido advém de uma predisposição para a plasticidade e para a elasticidade do dizer. A poesia é colocada numa situação-limite que pode inspirar desconfiança ou, se pensarmos em práticas de leitura mais conservadores, pode resultar num desprezo que negará a própria existência de poesia, independentemente do que entendamos sobre tal conceito, nas práticas poéticas levadas a cabo por estes autores. São treze e nem todos canadianos de origem. Robin Blaser (1925-2009), por exemplo, nasceu em Denver, Colorado, e só em 1972 obteve cidadania canadiana. É também o mais velho dos antologiados e o único que, à data em que escrevo, já faleceu. A este se juntam Robert Kroetsch (1927), Fred Wah (1939), Roy Miki (1942), bpNichol (1944), Dennis Cooley (1944), Steve McCaffery (1947), nascido em Sheffield, Inglaterra, Dionne Brand (1953), emigrada para o Canadá em 1970, mas nascida em Guayguayare, Trinidad, Erín Moure (1955), Karen Mac Cormack (1956), nascida na Zâmbia, Jeff Derksen (1958), Lisa Robertson (1961) e Christian Bök (1966).

Cada qual com as suas idiossincrasias, ligam-se pela tendência para a experimentação poética e pela recusa da fossilização discursiva que caracteriza a poesia dita mais acessível ou, pelo menos, mais convencional. Mas ligam-se igualmente por outros aspectos não tão evidentes. Nota-se, por exemplo, uma certa inclinação para polvilhar a explosão poética com elementos oriundos de outras artes ou ciências: da zoologia à geologia, da geografia à economia, da política à história, etc. Erín Moure, a título de exemplo, enraíza a criação poética no trabalho de tradução, chamando ao palco vozes tão diversas como as de Alberto Caeiro, Jean-Luc Nancy, Judith Butler, Lévinas, Aristides Sousa Mendes, Clarice Lispector, entre outros. A intenção não deixa margem para dúvidas: «Desfazer o conceito do “eu” como observadora não autoconsciente no poema, como “voz poética”. Que se dane a voz poética» (p. 221). Daqui à produção do acaso, das composições de cariz mais visual a outras filiadas na chamada poesia sonora, é precisamente o eu lírico quem acaba mais maltratado. No entanto, a corrosão do lirismo não é um fim em si mesmo. Note-se como não deixando de ser algo líricos, os poemas de Dionne Brand armadilham esses resquícios de lirismo assumindo na sua vertente política uma interrogação dos limites da linguagem: «O que eu digo em qualquer língua é dito com perfeito / conhecimento da pele, em embriaguez e pranto, / dito como uma mulher sem fósforos e mecha, não em / palavras e em palavras e em palavras decoradas, / contadas em segredo e sem ser em segredo, e escuta, não / se extingue nem desaparece e é abundante e impiedoso e ama» (p. 53).

Palavras decoradas ou decorativas, certo é que encontramos nestes poemas uma constante interrogação do sentido. Talvez o poema (A) Diferença Faz-se, de Fred Wah, seja, pelo que foi afirmado, o mais representativo da antologia: «Dizer: “Não percebo o que isto significa” é, pelo menos, reconhecer que / “isto” significa. O problema é que o sentido não é uma totalidade de / igualdade e previsibilidade» (p. 277). A problematização do poético e a sua aparente imprevisibilidade acaba por ser o que de mais resistente encontro nestas práticas poéticas, pelo que sou levado a concluir ser esta apenas mais uma das diversas formas do fazer poético que redundará sempre numa vontade de conhecer o mundo para lá da sua aparente cognoscibilidade. A questão é que talvez a palavra não tenha mesmo nada a dizer. Antes de terminar, alguns aspectos de organização que importa sublinhar, até pela relevância que assumem numa obra deste tipo: a edição é bilingue, permitindo um acesso directo aos textos originais e uma confrontação com as versões portuguesas que, diga-se em abono da verdade, são, pela dificuldade das propostas, geralmente meritórias; cada autor tem direito a notas biobibliográficas com todas as referências necessárias para um melhor enquadramento dos trabalhos seleccionados, assim como menção a sítios na Web que poderão abrir portas sobre as obras em causa; acrescentam-se ainda breves citações de cada um dos autores, esclarecedoras do entendimento que cada um construiu sobre as suas próprias produções. Um mimo, portanto, para os adeptos da poesia experimental.

Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

paulo da ponte disse...

A Antígona tem-nos habituado a uma linha editorial irrepreensível e coerente, o completo oposto do país real. Vou continuar atento. :)

hmbf disse...

Um caso raro português.