sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

"AS TOLICES QUE KANT DIZIA"

Santo Agostinho propôs o exemplo extremo de alguém que escondeu em casa uma pessoa que um assassino feroz tenta matar: se o assassino perguntar se a vítima está em nossa casa, embora o bom coração, se não o bom senso, imponha uma mentira, nem nesse caso devemos dizer uma mentira piedosa.
   O tema foi retomado por Immanuel Kant (Sobre os Deveres Éticos em Relação aos Outros, Sobre o Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade, Sobre a Mentira). Benjamin Constant sustentava (Sobre as Reacções Políticas) que dizer a verdade é um dever, mas «ninguém tem direito a uma verdade que prejudique os outros»; aquilo que conhecemos é um património que podemos ceder ou não aos outros segundo a nossa vontade. Para Kant, pelo contrário, a veracidade era um dever incondicional: «Se um homem recorre a notícias falsas prejudica, não um homem em particular, mas antes toda a Humanidade, pois, se o seu comportamento se generalizasse, o desejo humano natural de conhecer seria frustrado.»
   Quanto ao assassino que pergunta onde está a vítima que escondemos, o argumento kantiano é digno da capacidade que este grande homem às vezes tinha de dizer tolices (como quando afirmava que a música era uma arte inferior, porque até quem não o desejava era obrigado a ouvi-la, enquanto, diante de um quadro, é possível virar os olhos para outro lado). Diz ele: se mentirmos dizendo que a vítima não está em nossa casa e o assassino a for procurar noutro lugar, pode acontecer que ela tenha saído sem que soubéssemos e o assassino, portanto, a encontre nas redondezas. Por outro lado, se admitirmos que ela está em nossa casa e ele entrar, pode aparecer entretanto um vizinho e capturar o assassino antes que ele mate a vítima. O facto de que ele próprio, Kant, ter o dever de prender o assassino nem lhe passou pela cabeça. O afável professor preferiu esperar pelo vizinho.


Umberto Eco, in Aos Ombros de Gigantes, trad. Eliana Aguiar, Gradiva, Outubro de 2018, pp. 254-255.

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