quarta-feira, 19 de maio de 2021

DUAS ESTREIAS

O ano ainda não vai a meio, mas já podemos congratular-nos com algumas estreias no caminho. Dois livros próximos em múltiplos aspectos marcam o primeiro trimestre do ano. Ambos escritos por mulheres, ambos vinculados a uma poesia do corpo, ambos assumindo em epígrafes de Herberto Helder um patronato, sublinhe-se, nada epigónio, fazem um uso diferente da linguagem poética para expressarem visões distintas do mundo organizadas também de modo dissimelhante. Maria F. Roldão (n. 1965), formada em Sociologia, publicou alguns poemas em revistas e edita a Nervo (n.º 11, Maio/Agosto de 2021). Ana Freitas Reis (n. 1981) é psicóloga. Conhecemos alguma da sua poesia através de partilhas nas redes sociais e de dispersos surgidos em publicações colectivas on-line.


Pequeno Sangue (volta d’mar, Fevereiro de 2021) colige um conjunto de poemas que, não estando, aparentemente, subordinados a um tema comum, se ligam em torno da carga simbólica transportada pela palavra sangue. Veículo de vida e de paixões, o sangue é, antes de mais, o líquido que anima o corpo. Ainda que tenha uma identidade, um tipo, não é mensurável como um sólido, daí que o uso do adjectivo “pequeno” a ele associado gere um efeito de estranheza que de algum modo anuncia uma das características mais evidentes nestes poemas: a insistente subversão das leis que determinam perspectivas científicas do mundo. Neste sentido, a poesia de Maria F. Roldão participa de um pressuposto que confere à linguagem poética uma expressão da realidade alternativa ao rigor da razão e à percepção empírica. E este pressuposto concretiza-se, principalmente, de dois modos: através da recorrência a imagens paradoxais e de uma constante experimentação que faz de cada poema uma unidade isolada. 
As imagens paradoxais verificam-se ao longo do livro quer em formulações alegóricas de experiências concretas, quer através da combinação de palavras pertencentes a campos semânticos opostos, alcançando-se, desse modo, uma representação ambígua ou mesmo absurda da realidade. Logo no Preâmbulo damos com «uma vaga ciência nas / metades boas do sangue» (p. 9), para a seguir a água acabar arrumada numa gaveta, os líquidos do corpo serem cosidos, a água ser distribuída em estreitas fatias, a saliva dobrada, o sangue engomado, etc. A referência ao físico Denis Papin no poema intitulado Castanhas tem um significado irónico, já que nestes poemas as leis da física são o mero contraponto de um paradigma absurdista que a palavra delírio no pequeno poema introdutório logo instaura. O impulso experimental nota-se, precisamente e mais evidentemente, em poemas minimalistas tais como Pequeno Corte na Urgência ou Sôpro, onde um lúdico manuseamento gráfico e semântico salienta o erotismo subjacente ao tratamento de uma língua que aqui se confunde com corpo:
 
ARTESANATO
 
Forja-língua-bilro
 
O vime o barro
O muco
 
No ar tesão
 
Mais sóbrio em termos formais é o primeiro livro de Ana Freitas Reis, o qual obedece a uma distribuição rigorosa dos poemas que leva a pensar nesta obra como num longo poema em gestação. A palavra Cordão (Abysmo, Março de 2021) do título desperta, desde logo, inúmeras imagens, sendo a mais intensa aquela que acaba por advir da epígrafe final pedida de empréstimo a Herberto Helder: «cordão de sangue à volta do pescoço». Tratar-se-á, então, de um cordão umbilical, algo que, de resto, é sugerido no poema inicial que encena um parto, repercutido posteriormente nos pequenos poemas distribuídos por páginas ímpares através de um complexo lexical assaz sugestivo desse «rebento milagre» inaugural: coração, sangue, sopro, útero, pulmões, raiz. 
Não andaremos longe da verdade se situarmos esta poesia no campo de uma representação do corpo feminino e da mais essencial das suas funções, albergar a geração de um ser. Nisso é possível estabelecer um paralelismo com a própria natureza do poema, hospedeiro de uma entidade e de uma identidade que resulta da relação apaixonada entre quem escreve e quem lê. Mas nesse caso estaríamos já numa dimensão metafísica que não me parece ser a mais adequada à singularidade deste cordão, o qual me chega nitidamente enquanto elo ao «assombro de estar vivo» (p. 11). O que ressalta do umbigo é a ligação a uma anterioridade que em cada ser perpetua o mistério da vida. Espantosa é a forma como esse mistério acaba celebrado nestes poemas publicados num tempo obnubilado pela ameaça persistente da morte, a qual, não tendo sido omitida, serve para lembrar que «Ainda tens coisas acesas no teu corpo» (p. 58). Penso pois neste livro como na gestação de um poema, e penso no poema como na gestação de um ser. Poesia indelevelmente ligada ao corpo, às possibilidades de representação do corpo, por um cordão que vai sendo desatado de verso a verso através de uma sensibilidade rítmica notável que aborda a respiração como uma doação. O recurso insistente a anáforas pontua o movimento sincopado de um coração, na demanda de uma musicalidade que reverbera uma meticulosa selecção verbal. Não faltam sequer alusões mitológicas (o barro que se molda, Adão e Eva) ou ao paganismo organizado em torno dos ciclos da natureza (referências ao correr dos meses, à Primavera enquanto momento de renovação). O Verão é a estação privilegiada desta poesia solar, a qual se desvia da melancolia repisada e da soturnidade elegíaca mais corriqueira optando pelo fulgor das chuvas que fertilizam a terra enquanto «possibilidade na alegria» (p. 25). Há neste Cordão uma reaproximação do homem à natureza que supera a ruptura operada por um racionalismo castrador e cristalizador, o mesmo que nos usurpou toda a possibilidade de espanto e de mistério, toda a hipótese de milagre. Saúde-se a coragem de num livro de poesia fascinado com a vida, neste início de século tão dado à morte:
 
MINTO SOBRE O ESTATUTO CONTEMPORÂNEO
 
todos somos, finalmente, aspectos vagabundos da natureza
Maria Gabriela Llansol
 
Continuamos a procurar o espanto
nas montanhas, insistimos
nos cumes altos, miradouros
frívolos ao serviço dos registos.
Saio para sentir o odor lunar,
procuro sinais de nascença pelo solo.
 
Não temo o chão da terra.
 
É noite ainda.
Caem flechas por entre os ramos secos
de um sobreiro.
Trincamos os espinhos da navalha.
As cabeças movem-se em direcção ao centro
da fornalha.
 
Porque sim,
Pela indolência da seiva que sabe
de uma revolução nocturna.
Encarno o perfume desgraçado desse lírio silvestre
quando afinal repouso nos seios da natureza.
 
Fica de dia.
Uma chuva opulenta inunda o nosso quarto,
certos beijos prolongam o voo,
sem temer a existência.
 
Hoje só conheço a terra,
a única que não esquece a persistência
e a possibilidade na alegria.

2 comentários:

Anónimo disse...

VOLTA D`Mar & ABISMO: a grande festa do caçador de afinidades...

hmbf disse...

Meu, tens ali ao lado link para 547 leituras. Não te acanhes. Perde a timidez, lê todas, e comenta. Preciso destes teus preciosos, úteis e inspiradores comentários como de pão para a boca.