O ano ainda não vai a meio, mas já podemos congratular-nos com algumas
estreias no caminho. Dois livros próximos em múltiplos aspectos marcam o
primeiro trimestre do ano. Ambos escritos por mulheres, ambos vinculados a uma
poesia do corpo, ambos assumindo em epígrafes de Herberto Helder um patronato,
sublinhe-se, nada epigónio, fazem um uso diferente da linguagem poética para
expressarem visões distintas do mundo organizadas também de modo dissimelhante. Maria
F. Roldão (n. 1965), formada em Sociologia, publicou alguns poemas em revistas
e edita a Nervo (n.º 11, Maio/Agosto
de 2021). Ana Freitas Reis (n. 1981) é psicóloga. Conhecemos alguma da sua
poesia através de partilhas nas redes sociais e de dispersos surgidos em
publicações colectivas on-line.
Pequeno Sangue (volta d’mar,
Fevereiro de 2021) colige um conjunto de poemas que, não estando, aparentemente,
subordinados a um tema comum, se ligam em torno da carga simbólica transportada
pela palavra sangue. Veículo de vida e de paixões, o sangue é, antes de mais, o
líquido que anima o corpo. Ainda que tenha uma identidade, um tipo, não é mensurável
como um sólido, daí que o uso do adjectivo “pequeno” a ele associado gere um
efeito de estranheza que de algum modo anuncia uma das características mais
evidentes nestes poemas: a insistente subversão das leis que determinam perspectivas científicas do mundo. Neste sentido, a poesia de Maria F. Roldão
participa de um pressuposto que confere à linguagem poética uma expressão da
realidade alternativa ao rigor da razão e à percepção empírica. E este
pressuposto concretiza-se, principalmente, de dois modos: através da
recorrência a imagens paradoxais e de uma constante experimentação que faz de
cada poema uma unidade isolada. As imagens paradoxais verificam-se ao longo do livro quer em formulações
alegóricas de experiências concretas, quer através da combinação de palavras
pertencentes a campos semânticos opostos, alcançando-se, desse modo, uma
representação ambígua ou mesmo absurda da realidade. Logo no Preâmbulo damos com «uma vaga ciência
nas / metades boas do sangue» (p. 9), para a seguir a água acabar arrumada numa
gaveta, os líquidos do corpo serem cosidos, a água ser distribuída em estreitas
fatias, a saliva dobrada, o sangue engomado, etc. A referência ao físico Denis
Papin no poema intitulado Castanhas
tem um significado irónico, já que nestes poemas as leis da física são o mero
contraponto de um paradigma absurdista que a palavra delírio no pequeno poema introdutório
logo instaura. O impulso experimental nota-se, precisamente e mais
evidentemente, em poemas minimalistas tais como Pequeno Corte na Urgência ou Sôpro,
onde um lúdico manuseamento gráfico e semântico salienta o erotismo subjacente
ao tratamento de uma língua que aqui se confunde com corpo:
ARTESANATO
Forja-língua-bilro
O vime o barro
O muco
No ar tesão
Mais sóbrio em termos formais é o primeiro livro de Ana Freitas Reis, o
qual obedece a uma distribuição rigorosa dos poemas que leva a pensar nesta
obra como num longo poema em gestação. A palavra Cordão (Abysmo, Março de 2021) do título desperta, desde logo,
inúmeras imagens, sendo a mais intensa aquela que acaba por advir da epígrafe
final pedida de empréstimo a Herberto Helder: «cordão de sangue à volta do
pescoço». Tratar-se-á, então, de um cordão umbilical, algo que, de resto, é
sugerido no poema inicial que encena um parto, repercutido posteriormente nos
pequenos poemas distribuídos por páginas ímpares através de um complexo lexical
assaz sugestivo desse «rebento milagre» inaugural: coração, sangue, sopro,
útero, pulmões, raiz. Não andaremos longe da verdade se situarmos esta poesia no campo de uma
representação do corpo feminino e da mais essencial das suas funções, albergar
a geração de um ser. Nisso é possível estabelecer um paralelismo com a própria
natureza do poema, hospedeiro de uma entidade e de uma identidade que resulta da
relação apaixonada entre quem escreve e quem lê. Mas nesse caso estaríamos já
numa dimensão metafísica que não me parece ser a mais adequada à singularidade
deste cordão, o qual me chega nitidamente enquanto elo ao «assombro de
estar vivo» (p. 11). O que ressalta do umbigo é a ligação a uma anterioridade que
em cada ser perpetua o mistério da vida. Espantosa é a forma como esse mistério
acaba celebrado nestes poemas publicados num tempo obnubilado pela ameaça persistente
da morte, a qual, não tendo sido omitida, serve para lembrar que «Ainda tens
coisas acesas no teu corpo» (p. 58). Penso pois neste livro como na gestação de um poema, e penso no poema como na
gestação de um ser. Poesia indelevelmente ligada ao corpo, às possibilidades de
representação do corpo, por um cordão que vai sendo desatado de verso a verso
através de uma sensibilidade rítmica notável que aborda a respiração como uma doação. O
recurso insistente a anáforas pontua o movimento sincopado de um coração, na demanda de uma musicalidade que
reverbera uma meticulosa selecção verbal. Não faltam sequer alusões mitológicas
(o barro que se molda, Adão e Eva) ou ao paganismo organizado em torno dos
ciclos da natureza (referências ao correr dos meses, à Primavera enquanto
momento de renovação). O Verão é a estação privilegiada desta poesia solar, a
qual se desvia da melancolia repisada e da soturnidade elegíaca mais
corriqueira optando pelo fulgor das chuvas que fertilizam a terra enquanto «possibilidade
na alegria» (p. 25). Há neste Cordão uma reaproximação do homem à natureza que
supera a ruptura operada por um racionalismo castrador e cristalizador, o mesmo
que nos usurpou toda a possibilidade de espanto e de mistério, toda a hipótese
de milagre. Saúde-se a coragem de num livro de poesia fascinado com a vida,
neste início de século tão dado à morte:
MINTO SOBRE O ESTATUTO CONTEMPORÂNEO
todos somos, finalmente, aspectos
vagabundos da natureza
Maria Gabriela Llansol
Continuamos a procurar o espanto
nas montanhas, insistimos
nos cumes altos, miradouros
frívolos ao serviço dos registos.
Saio para sentir o odor lunar,
procuro sinais de nascença pelo solo.
Não temo o chão da terra.
É noite ainda.
Caem flechas por entre os ramos secos
de um sobreiro.
Trincamos os espinhos da navalha.
As cabeças movem-se em direcção ao
centro
da fornalha.
Porque sim,
Pela indolência da seiva que sabe
de uma revolução nocturna.
Encarno o perfume desgraçado desse lírio
silvestre
quando afinal repouso nos seios da
natureza.
Fica de dia.
Uma chuva opulenta inunda o nosso
quarto,
certos beijos prolongam o voo,
sem temer a existência.
Hoje só conheço a terra,
a única que não esquece a persistência
e a possibilidade na alegria.
2 comentários:
VOLTA D`Mar & ABISMO: a grande festa do caçador de afinidades...
Meu, tens ali ao lado link para 547 leituras. Não te acanhes. Perde a timidez, lê todas, e comenta. Preciso destes teus preciosos, úteis e inspiradores comentários como de pão para a boca.
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