quinta-feira, 27 de maio de 2021

UMA JOVEM COISA PEQUENA

 


Em "A Origem da Obra de Arte", Heidegger fala de "uma jovem coisa pequena". Como é sabido, nesse texto Heidegger designa como "utensílios" o par de botas velhas de um quadro de Van Gogh. Como qualquer utensílio, essas "botas de camponês" definem-se em função da sua utilidade. Mas é interessante que aqui a utilidade das botas se restrinja exclusivamente ao andar e ao trabalho. Uma rapariga com sapatos de salto alto, andando com dificuldade nas grandes avenidas, seria para Heidegger "uma jovem coisa pequena" porque, ao contrário da "camponesa" que anda a trabalhar com as suas botas, que não sente sequer e ainda menos exibe, mantém com o seu calçado uma relação deformada, por não aperceber o sapato no seu valor de uso como utensílio do andar ou como utensílio laboral: "Pois bem, as  botas rústicas são postas pela camponesa quando trabalha no campo e só nesse momento são precisamente o que são. São-no tanto mais quanto menos a camponesa pensa nas botas durante o seu trabalho, quando nem sequer olha para elas nem as sente. A camponesa firma-se nas suas botas e anda com elas." A jovem rapariga que traz sapatos de salto alto estará sempre preocupada com eles. Senti-los-á a cada passo nas grandes avenidas e exibi-los-á constantemente. 

Byung-Chul Han, in Rostos da Morte - investigações filosóficas sobre a morte, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D'Água, Abril de 2021, p. 164.

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