sexta-feira, 12 de agosto de 2022

NO QUARTO

 


Acabo de assistir à morte do primeiro capítulo de um texto que estou a escrever.
São nove horas e cinquenta e oito aldeias de trigo violeta e ainda tenho tempo de o enterrar na cidade de Trança Tresloucada.
Estendido na cama, bebo tranquilamente chá gelado e avanço com as minhas palavras:
"... As luas poisam ora no amarelo ora no verde dos ananases. cavalos azuis lêem poemas de Andrade.
Dois pequenos pianos desviam o nevoeiro dos olhos. Um brinco-de-princesa diz André.
Formigas verdes distribuem pão.
Uma viola ensaia pequenos voos em redor das orelhas de um vitelo. Libelinhas bebem leite fresco.
Vamos construir uma aldeia? — Uma aldeia longe de qualquer outra aldeia e diferente de qualquer outra aldeia. Uma aldeia onde os tapetes sejam de terra e os berços de espigas. Uma aldeia onde os animais vivam e os frutos cresçam. Uma aldeia num vale longe de qualquer outro vale e diferente de qualquer outro vale. Uma aldeia onde o calor da noitinha refresque a cintura das searas e as mãos das crianças aqueçam as fontes. Uma aldeia onde se vejam montanhas e árvores azuisverdebrancas.
Vai amanhecendo de tardinha."

Carlos Mota de Oliveira, in Mancebos Solteiros do Mar, com prefácio de Miguel Serras Pereira, edição do autor, 1994, pp. 75-76.

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