segunda-feira, 14 de novembro de 2022

CATORZE

 
   14. A rua de Santa Bárbara ainda hoje separa um bloco de vivendas geminadas, entretanto envelhecidas, à época imponentemente novas, de uma fila de casas humildes que suponho haverem sido bairro de mineiros. Daí Santa Bárbara, padroeira dos mineiros, mártir de pai tirano que mantinha a filha enclausurada numa torre protegendo-a da corrupção dos tempos. Vinham de longe tais costumes. Eu, que nunca fui dado a clausuras, descobri nas redondezas terreno fértil para crimes vários. Logo por detrás do eucaliptal onde, isolado numa barraca, vivia um cigano com arte para cestaria de vime, abriam-se elevações barrentas que davam para lagoas geradas pela exploração de inertes. Passava tardes a calcorrear aqueles terrenos, enterrado na lama de inverno, a rebolar na areia pela primavera, mergulhando nas lagoas pelo verão, mesmo sabendo que por lá já havia ficado alguém. Naquele tempo era assim, havia menos vedações e a segurança no trabalho estava tão ausente quanto a previdência no brincar. Agora que penso nisso e faço medições, não deixo de me impressionar com o que caminhávamos para chegar à Serra através das Salinas. Podia ter morrido mil vezes nessas aventuras, tais as imprudências de que me recordo. Quando nos queixamos da falta de sorte quase sempre omitimos uma infinidade de momentos em que só por sorte não fomos aquele que por lá ficou, na lagoa, a boiar numa tarde de verão.

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